Tribunal de Contas sob suspeita: deputados repetem 27 perguntas sobre sete perplexidades - TVI

Tribunal de Contas sob suspeita: deputados repetem 27 perguntas sobre sete perplexidades

  • Carlos Enes
  • 5 out 2024, 13:18

Juízes não conseguiram defender no Parlamento auditoria à concessão dos aeroportos, que marcou a última campanha eleitoral

O Tribunal de Contas (TdC) nunca antes tinha passado por semelhante humilhação na Assembleia da República. Os deputados da direita parlamentar apresentaram sucessivas questões sobre uma lista de “erros grosseiros” que encontraram no relatório de auditoria à privatização da ANA, Aeroportos de Portugal. Em duas horas de audiência, na Comissão Parlamentar de Economia (CPE), o juiz conselheiro relator fugiu ostensivamente às perguntas sobre as falhas apontadas.  José Manuel Quelhas não as reconheceu, mas também não apresentou qualquer explicação para as mesmas. Já o juiz conselheiro presidente, José Tavares, defendeu sete vezes a “isenção” da instituição que dirige, sem lograr afastar as suspeitas de parcialidade e até de instrumentalização do TdC para o jogo político. 

“Aquilo que aqui foi dito pelos senhores conselheiros deixa-nos profunda preocupação quanto ao distanciamento e isenção que nós queremos e institucionalmente se exige ao TdC”, declarou Paulo Moniz, do PSD, numa reunião subsequente da CPE. “Depois da incapacidade que o TdC teve para defender o seu próprio relatório, estas audições acabarão por ser bastante dolorosas, porque serão muito mais sobre os erros técnicos do TdC, e o estado do TdC, do que sobre a privatização da ANA”, resumiu Carlos Guimarães Pinto, deputado da Iniciativa Liberal (IL). 

Com base no relatório entretanto posto em crise, o PCP propôs a instauração de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) à privatização da ANA, imposta pela Troika e concretizada, em 2012, pelo Governo Passos Coelho. “O conteúdo deste relatório não pode ser ignorado, sob pena das graves conclusões que o mesmo retira não terem consequências, nem políticas, nem mesmo criminais”, proclamou o deputado António Filipe, em 8 de abril. 

O voto contra de PSD, PS e CDS chumbou a pretensão comunista, mas os partidos aprovaram, por unanimidade, a audição dos responsáveis políticos da época, nas reuniões regulares da comissão permanente de Economia. O Chega, que se absteve quanto à proposta de CPI apoiada por todos os partidos de esquerda, ameaça agora retomar a iniciativa, mas com novos visados. “Os senhores saberão que num inquérito parlamentar terão de responder, clara e objetivamente, a tudo o que lhes for perguntado”, disse aos juízes o deputado Filipe Melo, que já repetiu o aviso em três reuniões. 

A solução do presidente da CPE, Miguel Santos, foi sugerir às bancadas parlamentares a redação, por escrito, das perguntas que ficaram por responder. Só o Chega se opôs, por entender que “as pessoas têm de estar disponíveis, independentemente do seu estatuto, para vir a esta comissão responder, olhos nos olhos com os deputados”, expôs Filipe Melo, que acusou os juízes, “cara a cara”, de “desrespeito pelos deputados e pela Assembleia da República”. 

PSD e IL redigiram um total de 27 perguntas, a que a CNN Portugal teve acesso. Esses interrogatórios podem ser resumidos em sete temas críticos, que deixaram os deputados perplexos. 

Duas auditorias com conclusões opostas  

Em 29 de janeiro de 2013, o grupo parlamentar do Bloco de Esquerda escreveu ao então presidente do TdC, Guilherme d’Oliveira Martins, pedindo uma investigação à “legalidade” da privatização da ANA, concluída no mês anterior pelo governo da AD.  

O TdC constituiu uma equipa de auditores, na dependência do grupo de trabalho de juízes conselheiros constituído, em 2012, para o acompanhamento das privatizações. O processo arrancou três meses depois. Ao fim de três anos, um “Relato de Auditoria” à privatização da ANA foi expedido para contraditório dos responsáveis políticos, reguladores e empresas públicas envolvidas na privatização.  

O relato de 2016, cuja existência a TVI, do mesmo grupo da CNN Portugal, revelou em primeira mão, concluía que “a privatização cumpriu o seu objetivo principal: a redução da dívida pública, maximizando o valor da venda”. A concessão dos aeroportos tinha sido “relevante para o Estado”, porque aquela receita extraordinária, no valor 3.080 milhões de euros, foi decisiva na redução do défice e para salvar Portugal da bancarrota.  

Agora, oito anos depois dessa versão original sobre os factos, o TdC publicou um outro relatório, a concluir o contrário. Afinal, “a privatização da ANA não salvaguardou o interesse público”, entre outras razões por “não ter sido maximizado o encaixe financeiro”.  

Os deputados exigem explicações para o virar do bico ao prego. “Como é possível que duas auditorias, do mesmo TdC, perante os mesmos factos, o mesmo comprador, o mesmo processo, o mesmo valor de venda, cheguem a duas conclusões diametralmente opostas sobre a mesma matéria de facto?”, pergunta o PSD. “Se o tribunal é de contas, as contas têm de bater certas”, enfatizou o deputado Gonçalo Lage na CPE. 

Presencialmente, os juízes refugiaram-se numa justificação formal, sem enfrentar a substância da perplexidade dos parlamentares. O presidente do TdC alegou que “um relato, como um projeto de lei, não vincula o tribunal”, por não ter sido formalmente aprovado pelos juízes. O que os deputados queriam, sem sucesso, era uma chave lógica para entenderem o sucedido. “Não houve ninguém, até hoje, capaz de nos elucidar sobre como se explicam duas auditorias completamente diferentes do mesmo órgão”, lamentou Filipe Melo, do Chega. 

Dois ex-governantes, entretanto ouvidos na CPE, foram chamados a comentar a situação. “Eu estranho que o conteúdo seja diametralmente oposto, estranho que as conclusões sejam tão diferentes”, respondeu Sérgio Monteiro, secretário de Estado que conduziu a privatização no governo da AD. “Não é o meu papel criticar o TdC, ou avaliar as razões para elementos materialmente diferentes num relatório e no outro”, resguardou-se Pedro Marques, ministro das Infraestruturas no primeiro executivo de António Costa. “Percebo que os senhores deputados o façam, que para a vossa avaliação política das audições seja importante essa contextualização”, concedeu apenas.  

A violação do “sagrado” contraditório  

Na expressão solene do seu presidente, no discurso inicial proferido na Assembleia da República, o direito dos auditados ao contraditório “é um princípio mais do que sagrado do TdC”.  

Em 2016, foi escrupulosamente respeitado. O relato original de auditoria à ANA foi enviado a três ex-governantes da AD: Maria Luís Albuquerque, Álvaro Santos Pereira e Sérgio Monteiro; três ministros, à época recém-empossados no primeiro governo de António Costa: Mário Centeno, Manuel Caldeira Cabral e Pedro Marques; três entidades reguladoras: Autoridade da Concorrência (AdC), Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM); e cinco empresas públicas e departamentos da administração central envolvidos na privatização. 

Já em 2024, o sagrado contraditório foi profanado. Nenhum dos antigos governantes, responsáveis pela privatização, teve direito a pronunciar-se. A profanação assumiu especial gravidade porque o TdC, em lugar de os elogiar, como há oito anos, os censurou severamente. Mas eles só souberam disso pelos jornais. 

Como se explica tamanha alteração de metodologia? “Este relatório não evidencia infrações financeiras, porque se evidenciasse teria havido contraditório”, justificou José Tavares na audição parlamentar. O ex-secretário de Estado das Infraestruturas desmentiu este argumento na reunião seguinte da CPE dedicada ao assunto. “Eu fui convidado pelo TdC para exercer o contraditório, em múltiplas operações e decisões enquanto membro do Governo - e em nenhuma delas havia propostas de sanções financeiras, a nenhum dos intervenientes”, reagiu Sérgio Monteiro. 

O TdC é convidado a reconhecer o deslize, que viola a sua própria lei orgânica. “Tem alguma justificação para o número de entidades a quem pediu contraditório se ter reduzido de catorze para cinco?”, pergunta o PSD, por escrito.  

“O contraditório é uma fase da auditoria muito séria. Nós não podemos pronunciar-nos e aprovar um relatório de auditoria sem ouvir os auditados e sem ter em consideração aquilo que os auditados nos dizem”, garantiu o juiz conselheiro José Tavares aos deputados.  

A verdade é que auditoria de 2024 desconsiderou quase por completo os argumentos da Vinci e da Parpública. Com a pronúncia da empresa pública gestora das participações sociais do Estado registou-se um episódio caricato. 

O caderno de encargos previa que a Parpública emitisse pareceres sobre as propostas dos concorrentes. Na análise dessa documentação, os auditores julgaram ter encontrado uma data falsificada, compulsando as datas de um e-mail com um dos seus anexos.  “Não é possível a versão impressa de uma comunicação de 12/10/2012 ter, como conteúdo, a versão impressa de uma comunicação eletrónica de 06/11/2023 (enviada 25 dias depois)", descreve o relatório, aprovado em 21 de dezembro. 

No contraditório, publicado como anexo do relatório, a Parpública explica que não há erro nenhum. A data verdadeira do e-mail é 10 de dezembro – e não 12 de outubro, como pareceu aos editores. A explicação é prosaica: o sistema de gestão documental da Parpública faz os registos de acordo com a datação (mês/dia/ano), corrente em países como os EUA. E não como a mais usual em Portugal (dia/mês/ano). 

Apesar de terem recebido esta explicação em 6 de dezembro, os juízes mantiveram a suspeita no texto do relatório, aprovado 15 dias depois.  

O PSD pergunta “o que faz o Tribunal de Contas quando recebe um contraditório que diz que há um conjunto de questões que não são verdade no relatório que enviou?”. 

À nossa reportagem, o TdC respondeu que o esclarecimento da Parpública era “plausível, mas intempestivo”. 

Erros de palmatória: “Pasme-se, até os trabalhadores do aeroporto sabem isso!” 

As três bancadas de direita têm preenchido as reuniões da CPE com a denúncia de múltiplos erros grosseiros do relatório de 2024. Se os juízes se furtaram a responder por eles, também nenhum deputado de esquerda tentou, até ao momento, contraditar essas alegações, que deixaram em crise a competência técnica do TdC para cumprir missões de auditoria.  

A conclusão mais grave do relatório consiste na acusação, ao Governo de Passos Coelho, de ter feito um “desconto” de última da hora no preço de privatização. “O Estado concedeu à Vinci dividendos de 2012, quando a gestão ainda era pública”, acusa José Manuel Quelhas. O juiz relator condenou ainda a dedução, ao valor da venda da empresa, dos encargos de um empréstimo, contraído pela ANA no último ano de gestão pública, com o objetivo de aliviar o défice das contas públicas. Somadas essas parcelas, “o preço de privatização (1,127M€) foi 71,4M€ inferior ao oferecido e aceite (1.198,5M€)”. 

Obviamente, esta conclusão do relatório é a notícia de um crime. O PCP reagiu em conformidade. “Há aqui três questões a apurar: a responsabilidade política de quem mentiu ao povo português, a responsabilidade financeira da Vinci que pode ter recebido um desconto ilegal e a responsabilidade criminal de quem ofereceu esse desconto”, expôs o deputado António Filipe. 

O PCP foi induzido em erro. O crime, afinal, foi perpetrado com pólvora seca. A distribuição de dividendos e o empréstimo, deduzidos ao valor líquido pago pela Vinci, aconteceram depois de 30 de junho de 2012, data de fecho das propostas finais de todos os concorrentes à privatização. Pelas regras do concurso público internacional – e pela prática corrente em todo o mundo – o acionista Estado jamais poderia ter sacado, por adianto, 71,4 milhões de euros à empresa, sem acertar contas no momento da alienação. Seria como vender um museu com todas as obras de arte incluídas e depois retirar de lá duas ou três antes de entregar a chave ao comprador, como explicam os peritos consultados pela TVI e CNN Portugal.   

“Eu não devia ter de explicar isto, mas o Estado nunca teria direito àqueles dividendos!”, declarou, sem disfarçar um misto de riso e de constrangimento, o deputado liberal Carlos Guimarães Pinto. Na audição seguinte, para se defender do libelo de ter facilitado um desconto a uma empresa privada, Sérgio Monteiro embrulhou a indignação em sarcasmo. “Muitos trabalhadores da ANA tornaram-se acionistas da VINCI e agora sabem – pasme-se! – quem tem direito a dividendos em cada momento, até isto eles conseguiram perceber”, comentou o ex-secretário de Estado. “Até para a literacia financeira, que tanto parece fazer falta ao nosso país, esta privatização contribuiu”, ironizou. O “país” tem as costas largas, porque ele estava obviamente a falar para os juízes que lançaram a acusação. 

PSD e IL querem que o TdC proceda à correção do relatório, se não conseguir fundamentar, por escrito, esta e outras conclusões da auditoria que consideram erradas.  

Os juízes desconfiam das razões que levaram os privados a subir substancialmente o valor das licitações entre o início do concurso público e a proposta final, secreta e definitiva. Por isso, consignaram não ter encontrado “evidência dos fundamentos para a alteração das propostas vinculativas face às não vinculativas”. A suspeita despertou o humor dos liberais. “Isso até tem alguma piada para quem já esteve envolvido em processos competitivos. Os concorrentes não podem revelar na abertura do jogo quanto estão dispostos a pagar. Na fase vinculativa, aí sim, colocam o preço máximo. Foi assim neste como em todos negócios deste tipo”, deslindou Guimarães Pinto. 

O relatório de auditoria procede à contabilização aritmética dos lucros esperados da Vinci até ao fim da concessão – sem qualquer taxa de desconto, ponderação do risco de investimento e das elevadas taxas de juro a que Portugal estava sujeito no momento da privatização. Os parlamentares com formação em economia e gestão abriram a boca de espanto. “Eu esperaria isso vindo de pessoas com menos conhecimento, não espero que o TdC faça esse tipo de raciocínio”, censurou o deputado liberal. “Em 2012, devido à difícil situação financeira do país, o risco de qualquer investimento era extremamente elevado (havia mesmo a hipótese de um default e a saída do Euro), o que ainda agravava mais qualquer taxa de desconto de cash-flows futuros”, recorda o PSD no interrogatório enviado ao TdC. 

“Viés ideológico” 

O relatório do TdC publicado em 2024 recupera diversos dados, análises e textos do relato de 2016. Entre eles, um estudo do Conselho Internacional de Aeroportos (ACI), datado de 2010. Na altura, 233 (77%) dos aeroportos da União Europeia (UE) eram administrados pelo Estado; e 43 (14%) por empresas de capital misto, público e privado. “Só no Chipre, todos os aeroportos eram geridos por entidades privadas”, valoriza agora o TdC, como fundamento para criticar a privatização “em bloco” da ANA, em 2012. 

Já passaram 14 anos sobre esse barómetro da ACI, mas a auditoria portuguesa só atualiza o resultado até meio da fita de tempo, com recurso a um segundo relatório da mesma entidade, publicado em 2016:  189 (53%) dos aeroportos continuavam a ser propriedade dos Estados, enquanto 106 (30%) eram geridos por entidades com capitais mistos. Para além do Chipre e de Portugal, a Hungria e a Eslovénia tinham decidido concessionar integralmente os seus aeroportos a empresas privadas.  

“A decisão de venda integral da ANA fez Portugal divergir da maioria dos países da UE, que optou por manter o setor sob gestão pública, ou estar presente no capital social das empresas”, descreve o TdC. Esta conclusão, como é natural, foi glosada pelos partidos de esquerda que defendem o regresso da ANA ao perímetro da administração pública.  “É necessário realizar a renacionalização da ANA? Qual a melhor forma de proceder?”, era o último objetivo da proposta de inquérito parlamentar apresentada pelo PCP. 

Acontece que o TdC omitiu dados relevantes do relatório da ACI. Um deles parece imprescindível à análise do dilema económico apresentado na auditoria: 75% do tráfego de passageiros já em 2016 se concentrava em aeroportos com alguma forma de gestão privada. Este “já” não é arbitrário: a ACI também salientou a “tendência para o aumento generalizado” da entrada de capitais privados no negócio aeroportuário.  

Aquela federação de 814 membros, em 169 países, tem uma interpretação de sentido contrário à dos juízes para as pistas de aterragem e terminais que continuam na propriedade do Estado. Não, em regra isso não é determinado por opções políticas. Antes se explica pela circunstância de “os aeroportos regionais mais pequenos tenderem a ser estruturalmente não rentáveis”.  

O deputado Guimarães Pinto confrontou o juiz relator com eventuais preconceitos inconfessáveis em favor da gestão pública, estranhos à missão do tribunal. Tendo ficado sem resposta, o grupo parlamentar da IL insistiu no assunto por escrito. “Consegue o TdC reconhecer que as suas observações demonstram um viés sobre uma decisão ideológica de privatizar um aeroporto?”, pergunta no seu ofício. Os deputados liberais põem o dedo na ferida aberta pela omissão do facto relativo aos 75% de passageiros em aeroportos com gestão privada: “Admite o TdC que a observação efetuada é, no mínimo, enganadora?”. 

“Este relatório tem um conjunto de erros técnicos graves e muitas considerações que são opiniões”, reagiu, na CPE, o ex-secretário de Estado das Infraestruturas de Passos Coelho. “Não é por acaso que cita dados de 2010, porque hoje a tendência é muito mais a da gestão por entidades privadas”, expôs o antigo governante, que tutelou diretamente a privatização. “A tendência, a partir de 2011, foi seguir Portugal. Fomos precursores de uma tendência - e não seguidores de outra, que hoje se mostra ultrapassada”, sentenciou Sérgio Monteiro. 

Um lapso de 12 anos de tempo  

O TdC considera, em 2024, que existiam condições, em 2012, para o Estado conservar uma posição acionista na ANA: “Em suma, o Estado decidiu a venda integral da ANA, em contexto adverso (com urgência, em situação recessiva), enquanto a maioria dos países da União Europeia manteve uma participação no capital social das entidades gestoras aeroportuárias”. 

Na CPE, os partidos de direita fizeram indispostos uma viagem de 12 anos no tempo, recomendando aos juízes memória e bom senso. A empresa foi alienada por imposição da Troika, que condicionava novos empréstimos ao Estado português a apertadas avaliações trimestrais sobre a execução do programa de assistência financeira. “Há um erro de forma, há um erro de vício, quando o tribunal tece considerações sem ter em conta as circunstâncias extraordinariamente difíceis que o Governo PSD/CDS teve de enfrentar”, protestou o deputado Paulo Moniz, do PSD.  

Várias declarações de voto de juízes do TdC chamam a atenção para o mesmo vício de análise. 

O relatório publicado em 2024 também declara “não se ter verificado o reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da ANA, em benefício do sector da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias”. 

Este ponto também estava destinado a causar turbulência. Como é público e notório, os primeiros doze anos de privatização coincidiram com um salto abrupto nas estatísticas de passageiros, companhias aéreas e rotas nos aeroportos portugueses. Em 2012, a rede da ANA processou 31 milhões de passageiros, em 2023 ultrapassou 67,5 milhões. Os aeroportos do continente e das ilhas ganharam ligação direta a 408 novos destinos. 

Em 2010, o Governo estimou que o aeroporto de Lisboa se esgotava com 12 milhões de passageiros. Em 2023, serviu mais de 33 milhões. “Aqueles riscos não se materializaram! O Estado tinha um conjunto de previsões para o aeroporto e todas foram excedidas de uma forma impressionante”, protestou o deputado Carlos Guimarães Pinto, na audição aos juízes. 

Depois da privatização, o turismo aumentou aparatosamente de peso na economia portuguesa, tendo atingido 12,7% do PIB em 2023. O saldo da balança turística subiu de 7,2 mil milhões, em 2014, para 18,8 mil milhões de euros no ano passado. “Então, nós não queremos cá mais turistas, a entrar pelos aeroportos? Nós não queremos que os turistas sejam um dos estabilizadores automáticos da economia, que gastem cá dinheiro, que estimulem o comércio, os serviços?”, reagiu o antigo secretário de Estado Sérgio Monteiro, na CPE. 

Declarações de voto contundentes  

O relatório foi votado por nove juízes conselheiros, mas quatro apresentaram declarações de voto com críticas contundentes. A gravidade dessas pronúncias levou vários deputados a interpretá-las como votos contra, assim como a TVI/CNN nas reportagens emitidas antes da audiência parlamentar aos responsáveis do TdC. “É uma questão de sermos rigorosos. O relatório não foi aprovado com quatro votos contra. Foi com um voto contra e três declarações de voto”, corrigiu José Tavares. 

A digressão da auditoria por domínios reservados ao debate ideológico e partidário foi alvo de censura por parte de duas magistradas. O modelo de privatização da ANA “trata-se de uma opção política de quem, na altura (2012), tinha legitimidade para a tomar”, escreve a conselheira Maria dos Anjos Capote. Também Maria da Conceição Antunes identifica seis conclusões “sobre decisões políticas que não cabe ao Tribunal apreciar”.  

Conceição Antunes votou, na íntegra, contra o relatório de auditoria, por discordar da “falta de fundamentação” e de “precisão” de 35 conclusões e recomendações. Nessa longa lista, destaca-se a discordância quando às conclusões mais graves: o alegado “desconto” de 71,4 milhões de euros no preço de privatização; e a suposta “sobrevalorização” da oferta da Vinci.  

Já Maria dos Anjos Capote declarou rejeitar dez conclusões e recomendações.  “Utilizam-se expressões como «risco de sobreavaliação», «risco de os valores da empresa não terem sido maximizados» e «risco de desproteção dos interesses nacionais» sem que se reportem evidências, passada mais de uma década, sobre a materialização de tais riscos, o que seria exigível”, consignou. O deputado Bruno Ventura citou este trecho. E manifestou espanto por ter sido informado, na audiência, que nem todas as declarações correspondiam a votos contra. “Isto é uma declaração de voto de alguém que votou a favor deste relatório. Isso devia levar-nos a interrogar algumas coisas!”, exclamou o deputado do PSD. 

É provável que a interpretação correta seja a de que uma juíza votou integralmente contra o relatório e três outros o fizeram apenas de forma parcial, sem o repudiar como um todo. O conselheiro Filipe Cracel Viana explicita que “votou vencido” alguns pontos do relatório. Em concreto, discorda que as taxas aeroportuárias, cobradas pela Vinci, devam ser consideradas receitas públicas e como tal registadas na contabilidade do Estado. E também não compreende que os fundos da privatização canalizados para a Câmara Municipal de Lisboa e para a Região Autónoma da Madeira, no valor de 286 milhões e 80 milhões de euros, respetivamente, sejam desconsiderados como encaixe financeiro das administrações públicas resultante da privatização.  

Já a juíza conselheira Ana Furtado discorda da alegação, que também escandalizou os deputados, de que a privatização não contribuiu para o desenvolvimento da ANA e da economia. Para além disso, defende que o mecanismo de partilha de receitas das taxas aeroportuárias, entre a Vinci e o Estado, deveria ser valorizado nas conclusões do relatório, até por uma questão de “equilíbrio”. 

Suspeitas de instrumentalização política 

Os deputados têm manifestado crescentes suspeitas quanto à parcialidade e à instrumentalização de um órgão de soberania, independente por imposição constitucional, para a luta partidária. “Temos aqui situações um bocado estranhas. O relatório do TdC saiu no princípio deste ano, numa altura em que a Assembleia da República já estava em dissolução”, desabafou Carlos Guimarães Pinto, na última reunião da CPE. 

O relatório de auditoria à privatização da ANA foi aprovado em 21 de dezembro de 2023. O presidente do TdC, José Tavares, explicou aos deputados que não foi publicado de imediato para não coincidir com a quadra natalícia. Depois das festas, “apressámo-nos a divulgá-lo, porque não queríamos imiscuir-nos em períodos eleitorais”, expôs José Tavares.  

A divulgação pública aconteceu no dia 5 de janeiro, primeira sexta-feira do ano. Foi o dia de arranque do congresso de lançamento da campanha do PS às eleições legislativas. À entrada do pavilhão da FIL onde se realizou a reunião, o ex-ministro Eduardo Cabrita puxou pelo relatório do TdC nas declarações aos jornalistas. Acusou o Governo Passos Coelho de ter privatizado a ANA com “dano para o Estado” e meteu ao barulho José Luís Arnaut, “um ex-ministro do PSD” que é administrador da Vinci. 

Cruzando o calendário com o teor do relatório, os partidos de direita desconfiam que o tribunal foi instrumentalizado para marcar a agenda eleitoral.  O deputado do PSD, Bruno Ventura, fez questão de ler aos juízes “o índice cancelado”, do relatório de 2016, e “o índice publicado no dia de inauguração do congresso do Partido Socialista”.  

Foi o momento mais embaraçoso da audição parlamentar aos responsáveis do TdC. O deputado começou por citar o índice do “relatório cancelado”: «Avaliação prévia»; «perímetro da operação»; «objetivos e calendarização», «modalidade da operação». Tudo categorias anódinas, sem juízos valorativos. Logo a seguir, passou ao índice que “aconteceu ser publicado no dia do congresso do PS”: «Ativos estratégicos sem salvaguarda legal»; «Desfasamento do processo e falta de avaliação prévia»; «Relevante despesa do Estado»; «Sobreavaliação da oferta»; «Posição competitiva e crescimento não reforçados».  Para incómodo dos juízes, o deputado rematou a intervenção com uma pergunta retórica: “Isto é um índice, ou são notícias?”. Por escrito, o PSD repete a pergunta que ficou por responder: “A norma do Tribunal de Contas, para a elaboração de índices dos seus documentos oficiais, mudou entre os dois relatórios?”. 

O Chega também tem manifestado, repetidamente, a mesma desconfiança quanto à instrumentalização do tribunal. “Havia uma análise de 2013 que certamente ficou no bloco de notas de alguém”, insinuou o deputado Carlos Barbosa. Ainda pediu aos juízes, pela enésima vez, uma explicação para “a disparidade” entre os dois relatórios, mas avançou logo com uma hipótese explicativa escandalosa: “Talvez seja porque os governos são diferentes. O Governo de 2013 era um; em 2018, já era outro”.  

O deputado Filipe Melo ameaçou com a proposta de uma comissão parlamentar de inquérito em três reuniões consecutivas da CPE. “Não quero ter dúvidas sobre a capacidade intelectual de quem escreveu este relatório, mas há aqui outras dúvidas que se podem levantar”, declarou na última.  

As suspeitas parlamentares agravaram-se pelo facto de o TdC, nos últimos meses, ter fornecido a documentação relativa ao processo de 2013 a conta-gotas. José Tavares começou por remeter ao Parlamento apenas o “Relato de Auditoria”, com a ressalva de que “representa um documento de trabalho da equipa de auditores, que não traduz nem vincula o Tribunal de Contas, uma vez que sobre o mesmo não intervieram os juízes conselheiros que compõem o Tribunal”. 

Mais tarde, os deputados tomaram conhecimento de que, afinal, o “Relato de Auditoria” já tinha passado a “Anteprojeto de Relatório”, que estava pronto a ser votado pelos juízes em junho de 2016. A TVI e a CNN também divulgaram a existência de outro documento interno do TdC suscetível de comprometer a alegação de que os juízes não intervinham na marcha dos trabalhos nem controlavam as decisões dos auditores. O “Diário / Trilho da Auditoria”, ficheiro em formato Excel, registou interações com o juiz relator, Monteiro da Silva, e outros três outros conselheiros do grupo de trabalho, criado no TdC em 2012, para acompanhar as privatizações: Pinto da Almeida, Santos Carvalho e Mira Mendes.  

O TdC foi agora formalmente convidado a partilhar com a Assembleia da República a informação completa sobre o processo.

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