A Rússia está a enviar peças de museu para a guerra - TVI

A Rússia está a enviar peças de museu para a guerra

  • CNN
  • Vasco Cotovio, Clare Sebastian e Martin Bourke
  • 9 mai 2023, 07:00
Tanques T-55 percorrem as ruas de Praga, capital da então Checoslováquia, em 1968. Reg Lancaster/Hulton Archive/Getty Images

No dia em que Moscovo celebra a vitória sobre a Alemanha nazi na Segunda Guerra Mundial, a 9 de maio de 1945, surgem cada vez mais imagens de material de guerra soviético que está a ser retirado de armazéns em bases militares

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Um comboio de carga carregado de tanques arrasta-se sob o sol fresco da primavera. "Uau", diz uma mulher, apontando a câmara do telemóvel. "Este é o segundo comboio, passou um igual pouco antes."

O vídeo, aparentemente filmado no final de março, mostra velhos tanques soviéticos a serem transportados, algures na Rússia. Não é a primeira vez que Moscovo vai buscar equipamento militar antigo ao armazém para ajudar a prosseguir a guerra na Ucrânia, mas isto é diferente.

Os tanques são os T-55, um modelo encomendado pela primeira vez pelo Exército Vermelho da União Soviética em 1948, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial.

São tão antigos que podem ser encontrados em museus.

"Este foi o primeiro carro de combate [MBT, Main Battle Tank] usado pela União Soviética na era da Guerra Fria", disse o historiador John Delaney, curador do Imperial War Museum (IWM), em Duxford, Cambridge, Inglaterra, enquanto mostrava um deles à CNN.

"Até então havia três tipos muito distintos de tanques - ligeiros, médios e pesados, que tinham papéis diferentes no campo de batalha", indicou Delaney. "A partir de meados dos anos 50, surgiu um conceito que tentava criar um tanque que pudesse fazer um pouco de tudo e que ficou conhecido como carro de combate."

Para o Exército Vermelho, era o T-55 e as suas muitas variantes, que mais tarde se tornou no tanque mais produzido no mundo, com mais de 100.000 unidades construídas. Barato, fiável, fácil de utilizar e de manter, foi um pilar militar do Egito à China e ao Sudão, onde ainda está em uso.

Tanques soviéticos T-54/T-55 à volta dos edifícios do parlamento na Hungria, a 12 de novembro de 1956. Jack Esten/Picture Post/Getty Images

Na Europa de Leste, foram utilizados para reprimir as revoltas nos antigos países do Pacto de Varsóvia, percorrendo as ruas da Hungria em 1956 e depois de Praga, capital da então Checoslováquia, em 1968.

Mas nas décadas seguintes, quando utilizados contra tanques de fabrico ocidental - em alguns conflitos israelo-árabes e depois na Guerra do Golfo - não se equiparavam.

"Na primeira Guerra do Golfo, em 1991, por exemplo, os tanques americanos e britânicos abatiam os T-55 iraquianos a 23 quilómetros de distância", lembrou Delaney.

A versão que se encontra no salão de guerra terrestre do IWM foi construída na década de 60 e pertenceu ao exército da Alemanha de Leste. Foi adquirida pelo museu após a reunificação alemã, com Berlim a preferir as versões padrão da NATO, como o Leopard 1 e depois o Leopard 2 - que enviou recentemente para a Ucrânia - e a deixar de lado o equipamento soviético desatualizado.

Tanques T-55 percorrem as ruas de Praga, capital da então Checoslováquia, em 1968. Reg Lancaster/Hulton Archive/Getty Images

Quando a Rússia começou a desativar os seus próprios T-55, na década de 80, ainda existiam mais de 28.000, observou Delaney, acrescentando que foram desativados em vez de desmantelados.

"Os soviéticos nunca deitavam nada fora", explicou. "Provavelmente, há um número significativo deles em armazéns à espera de serem reconfigurados."

E a Rússia parece disposta a fazer exatamente isso.

Do armazém para o campo de batalha

Imagens de satélite indicam que a Rússia tem estado a retirar dezenas de tanques do armazém numa base em Arsenyev, no extremo leste da Rússia. Fotos disponíveis publicamente mostram que um dos tanques armazenados é o T-55.

"Estão lá parados há uma década ou mais", apontou Delaney. "Precisarão de uma quantidade considerável de trabalho para voltarem a estar em boas condições de funcionamento."

Imagem de satélite da Maxar Technologies mostra o armazém de tanques em Arsenyev, antes da invasão da Ucrânia, em 22 de abril de 2021

 

Uma segunda imagem de satélite da Maxar Technologies mostra o armazém de tanques em Arsenyev a 21 de abril de 2023

Depois de as imagens de um comboio de tanques terem surgido nas redes sociais no final de março, a Conflict Intelligence Team (CIT), uma organização independente russa que utiliza informações de fonte aberta para investigar os conflitos na Ucrânia e na Síria, foi a primeiro a relatar que os T-54/55 estavam a ser retirados do armazém em Arsenyev.

Em abril, autoridades ocidentais disseram à CNN que tinham visto o velho tanque aparecer perto da linha da frente.

A Rússia não confirmou que está a enviar o T-55 para a linha da frente e o Ministério da Defesa em Moscovo não respondeu ao pedido de esclarecimento da CNN. Mas, nas últimas semanas, bloguistas pró-Kremlin bem relacionados têm partilhado fotografias que mostram estes tanques, alegadamente em territórios ocupados pela Rússia na Ucrânia.

O site neerlandês Oryx, de informações de fonte aberta e análise militar e de defesa, diz ter provas visuais de que a Rússia perdeu mais de 1.900 tanques desde o início da invasão, quase dois terços de uma frota inicial de cerca de 3.000. Para além da quantidade, a grande questão é a velocidade a que os blindados russos estão a ser abatidos.

"De um modo geral, a Rússia perdeu muito equipamento e é difícil construir novo equipamento", disse Robert Lee, antigo fuzileiro naval dos EUA e membro sénior do Foreign Policy Research Institute, think tank norte-americano.

"Estão a produzir alguns tanques novos - ainda estão a produzir os T-90 - mas, à escala (necessária), precisam de mais equipamento do que aquele que conseguem produzir, pelo que estão a recorrer a tanques cada vez mais antigos para compensar", acrescentou Lee.

Trevor Taylor, diretor do programa de defesa, indústrias e sociedade do Royal United Services Institute (RUSI), think tank britânico, afirmou que as sanções ocidentais também estão a abrandar a produção de armas russas.

"Temos várias provas de que a indústria russa, que teve acesso à tecnologia ocidental nos anos 90, está a sofrer com as restrições", garantiu Taylor. "Ouvimos dizer que estão a retirar chips das máquinas de lavar. E quando se faz isso, é óbvio que se está em grandes dificuldades."

"Fácil de utilizar" para os recrutas

Lee tem acompanhado a invasão russa da Ucrânia desde o início, usando tecnologia de código aberto [open source] para recolher informações sobre os combates na Ucrânia. Desde então, visitou as linhas da frente no leste da Ucrânia e, como a Rússia está numa posição defensiva, as batalhas entre tanques têm sido raras até agora e acredita que a utilização dos T-55 será limitada.

"Alguns destes sistemas serão provavelmente utilizados inicialmente numa zona de retaguarda", antecipou. "Por isso, não haverá necessariamente tanques a avançar, mas mais disparos a longa distância."

Se for esse o objetivo, Delaney acredita que o T-55 ainda pode ser útil.

"Uma das coisas em que se pode obviamente utilizar este tanque, se se estiver a tentar evitar um confronto de tanques, é colocá-los num fosso, em posições defensivas, de modo a que apenas se consiga ver a torre, e depois isso pode ser utilizado para defender posições do contra-ataque", disse. "Se for o agressor numa guerra e, de repente, estiver prestes a ficar na defensiva, isto seria eficaz para posições defensivas estáticas."

Imagem das redes sociais mostra um tanque T-55 na região de Zaporizhzhia, na Ucrânia

Enquanto as forças russas se preparam para suportar o peso de uma ofensiva ucraniana amplamente antecipada e equipada pela NATO, têm de contar com um exército de recrutas, menos preparado do que o do seu adversário.

E para os soldados mal treinados, o T-55 oferece algo que os tanques modernos não têm: facilidade de utilização.

"Se houver muitos recrutas a entrar, o que acontece atualmente com as forças russas, será mais fácil e mais rápido treinar as pessoas para utilizarem estes tanques do que um modelo mais moderno de carro de combate", considerou Delaney.

"É muito fácil de manter e, com um exército de recrutas, é isso que se procura, procura-se a capacidade de manter estas coisas operacionais."

A Ucrânia, aliás, também tem uma versão do T-55 no seu arsenal - 28 M-55 altamente modernizados fornecidos pela Eslovénia.

A Ucrânia é que decide

À medida que a Ucrânia se prepara para a esperada contraofensiva de primavera, a Rússia tem cavado trincheiras. Imagens de satélite revelaram extensas linhas defensivas construídas pelas forças de Moscovo nas regiões que continuam a ocupar.

Lee acredita que uma contraofensiva bem sucedida dependerá dos serviços secretos ucranianos encontrarem o local perfeito para avançar.

"Não é impossível, mas muito se resume ao facto de a Ucrânia encontrar pontos fracos numa linha e tentar penetrar por aí", disse.

E é aí que o equipamento moderno e mais avançado da NATO, com melhor blindagem, maior alcance e maior capacidade de manobra, pode ser útil, especialmente ao enfrentar equipamento soviético muito mais antigo.

"Penso que, diante das armas ocidentais, os russos devem contar com baixas muito pesadas se quiserem avançar com o sistema T-55", previu Taylor. "É um movimento de desespero usar armas desta idade."

E embora as batalhas de tanques sejam raras, a Ucrânia tem uma vantagem se elas ocorrerem.

"Se tivermos um grande campo aberto e estivermos a lutar contra um grande blindado numa vasta extensão de terra, então o T-55 está em clara desvantagem", defendeu Delaney.

"(Contra um Leopard ou um Challenger), se for um combate de tanques, o T-55 perderá sempre."

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