A Venezuela quer invadir e anexar grande parte da Guiana para que o sol volte a nascer em Essequibo - TVI

A Venezuela quer invadir e anexar grande parte da Guiana para que o sol volte a nascer em Essequibo

Guiana Essequibo (Getty)

Perante uma conjuntura internacional que lhe dá margem de manobra, Nicolás Maduro está decidido em avançar para a tomada do território. Representantes da Guiana falam em "ameaça existencial"

Dia 3 de dezembro vai ser um dos dias mais importantes da história recente da América do Sul. Na Venezuela, milhões de pessoas vão decidir se o país vai anexar grande parte da vizinha Guiana - cerca de 74% do seu território - e constituir o seu 24.º estado.

O referendo, convocado por Nicolás Maduro em outubro, pretende pôr no papel o apoio popular a uma eventual invasão da Guiana Essequiba, território que a Venezuela reclama como seu há séculos.

“No referendo de 3 de dezembro, o nosso povo decidirá democraticamente o seu futuro e o seu destino. Num dia que nos convoca a todos, para além das diferenças, para a defesa territorial e o respeito pela nossa soberania, o Essequibo pertence à Venezuela! Faça chuva, faça sol, votaremos cinco vezes ‘Sim’!”, escreveu o presidente venezuelano na sua conta na rede social X, no dia 10 de novembro, numa alusão às cinco questões colocadas no referendo.

Do outro lado, a Guiana fala numa “ameaça existencial”. "Não é exagerado descrever a atual ameaça à Guiana como existencial. Não consigo sublinhar vezes suficientes a urgência da situação que nos trouxe aqui hoje”, disse, no dia 14 de novembro, Carl Greenfield, antigo ministro e representante da Guiana junto do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), para onde António Guterres reencaminhou, em 2018, a resolução deste diferendo.

No entanto, a Venezuela não reconhece a autoridade do TIJ sobre esta matéria, e Maduro prometeu resolver a situação “de forma soberana”.

Como se chegou a este ponto?

Este território, situado na margem esquerda do rio Essequibo, foi alvo de vários conflitos e diferendos entre espanhóis, britânicos e neerlandeses nos últimos séculos. Desde o final do séc. XVIII, ainda enquanto dependência da coroa espanhola, até depois da separação da Venezuela da Grande Colômbia, em 1830, a Guiana Essequiba integrou o território da Venezuela.

Um ano depois, as colónias de Demerara, Berbice e Essequibo, cedidas pelos Países Baixos ao Reino Unido em 1814, juntaram-se para formar a Guiana Britânica. Esse pacto não estabelecia, contudo, quais as fronteiras ocidentais dessas colónias, pelo que, em 1840, o Reino Unido encarregou o explorador alemão Robert Schomburgk de definir as mesmas.

O resultado desse processo, a Linha de Schomburgk, um traçado que reclamava a posse britânica das terras a oeste do rio Essequibo, resultou no diferendo atual. Ao longo de décadas, a Venezuela procurou, à luz da Doutrina Monroe, o apoio dos Estados Unidos, potência emergente, para fazer face ao então império mais poderoso do mundo.

A intervenção de Washington D.C. chegou em 1895, com a Câmara dos Representantes norte-americana a aprovar uma resolução para que a disputa fosse resolvida num tribunal internacional, que Londres aceitou a contragosto. Os dois países materializaram a decisão dos legisladores americanos em 1897, com o Tratado de Washington.

Dois anos depois, a 3 de outubro de 1899, o tribunal criado para o efeito decide, em Paris, a favor do Reino Unido: salvo pequenas mudanças, os britânicos ficam com o controlo de quase toda a Guiana Essequiba.

A decisão não foi aceite pela Venezuela, que considerou que o processo estava minado desde o início. Dos cinco membros da comissão que decidiu o veredito final, dois foram escolhidos pelo Reino Unido, um pelos Estados Unidos e um pela Venezuela. O quinto membro, que deveria ser independente, também foi escolhido pela Venezuela, mas de uma lista elaborada pelo Reino Unido. As autoridades venezuelanas consideraram que esse quinto membro, o jurista russo Friedrich Martens, foi fortemente condicionado pelos britânicos e não demonstrou imparcialidade. Mesmo assim, a Venezuela obedeceu à decisão.

A polémica voltou em 1949, quando o memorando de Severo Mallet-Prevost, secretário oficial da delegação venezuelana ao tribunal arbitral de Paris, foi entregue ao governo de Caracas após a sua morte. Nele, Mallet-Prevost alegou que Rússia e Reino Unido fizeram um acordo para condicionar a ação dos três juízes naturais dos seus países. Na sequência, Martens terá dado duas opções aos juízes apontados por Estados Unidos e Venezuela: ou o Reino Unido ganha a disputa de forma unânime e as fronteiras ficam muito similares às definidas pela Linha de Schomburgk, ou o Reino Unido vence por 3-2 adquirindo ainda mais território do que o delineado pelo explorador alemão. Os dois juízes escolheram a primeira opção.

Munidos de todos estes dados, o governo venezuelano denunciou a situação na ONU em 1962. Quatro anos mais tarde, e cerca de três meses antes da Guiana Britânica conseguir a independência, os governos de Londres e Caracas assinam o Acordo de Genebra, o qual estabelece que as duas partes devem reconhecer as reclamações de ambas e trabalhar para uma solução pacífica aceite por todos: a disputa pela Guiana Essequiba passou, a partir desse momento, a estar reaberta.

A decisão de 1899 e o Acordo de Genebra são os pontos centrais do referendo de 3 de dezembro; o primeiro dos cinco pontos a votos vai questionar os venezuelanos sobre se “rejeitam, por todos os meios, a linha fraudulenta” de Paris; o segundo pretende apurar se os eleitores da Venezuela reconhecem que o acordo assinado na Suíça em 1966 é “o único instrumento legal” para resolver o diferendo.

Porquê o reacender das tensões neste momento?

A Venezuela vê na atual conjuntura internacional uma oportunidade para poder recuperar a soberania sobre o território e tornar realidade a máxima “El sol de Venezuela nace en el Esequibo!”, muito popular entre os seus habitantes.

O grande rival, os Estados Unidos, não tem mãos a medir com as guerras na Ucrânia e em Gaza, bem como com as tensões crescentes com a China a propósito de Taiwan. Por sua vez, Nicolás Maduro tem uma boa amizade com os dois presidentes dos seus principais países vizinhos: Gustavo Petro, da Colômbia, e Luiz Inácio Lula da Silva.

Outro grande fator prende-se com a abundância de recursos naturais do território, rico em petróleo e minério. As descobertas recentes têm dado um grande impulso à economia da Guiana, tendo o PIB registado um crescimento de 62,2% em 2022, o maior do mundo nesse ano segundo dados do FMI.

Por fim, Nicolás Maduro pretende dar um forte impulso à sua recandidatura à presidência. A Venezuela deverá ir a votos a 10 de janeiro e, segundo Jesús Castillo Moleda, cientista político venezuelano, o referendo pretende complicar a tarefa da oposição. "Uma coisa é ser contra o governo, outra é ser contra a defesa de um território que os venezuelanos historicamente dizem que pertence à Venezuela”, diz Moleda ao Deutsche Welle.

À mesma publicação, Yoel Lugo, cientista político da Universidade Rafael Urdaneta, de Maracaibo, avança com outro cenário que terá pesado na decisão do executivo do presidente. "O governo de Maduro pretende obter um ‘cheque em branco’ para que possa considerar várias opções, inclusive a militar, e assim estender o seu mandato e adiar as eleições presidenciais de 2024 devido a um possível 'estado de emergência'".

Para já, não há nenhum candidato formal para fazer frente a Nicolás Maduro dado que María Corina Machado, escolhida por 2,5 milhões de venezuelanos nas primárias da oposição, está proibida pela Controladoria-Geral da Venezuela de exercer cargos públicos durante os próximos 15 anos devido ao apoio a Juan Guaidó e às sanções impostas pelo Estados Unidos ao regime do país.

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