A agressão de um ator na passada terça-feira, em Lisboa, junto ao teatro A Barraca. As ameças e agressões a duas voluntárias de um Centro de apoio a sem abrigo, no Porto, na quarta-feira à noite - sendo que neste último incidente, nem um polícia escapou a levar um murro. Em comum, o facto de os agressores serem neonazis ou simpatizantes de extrema-direita que, aparentemente, quiseram mostrar uma posição. O politólogo José Filipe Pinto, especialista em movimentos extremistas e populistas, falou à CNN Portugal sobre estes atos recentes que aparentam revelar um maior à vontade no uso da violência. "Estes movimentos dizem claramente que só é português quem pertence à nação portuguesa", afirma José Filipe Pinto.
Podem os recentes resdultados eleitorais, em que o Chega conseguiu eleger mais dois deputados que o Partido Socialista, estar a influenciar este tipo de comportamento? Sentem-se estes simpatizantes da extrema-direita mais apoiados e com mais força para cometerem excessos? "Sim, claramente sim", assume o politólogo, autor do livro "A Europa numa Encruzilhada", que aborda estes movimentos urbanos de protesto. E que, na sua opinião, "estão a crescer um pouco por toda a Europa".
E os locais que se escolhem para se manifestarem ou para ações não são mero acaso: "Tivemos uma manifestação em Lisboa, por exemplo, perto de zonas que nós percebemos que são zonas em que é fácil encontrar imigrantes" ou até "pessoas que simpatizam com a causa imigrante", numa clara referência ao Martim Moniz. E é por isso que a agressão a um ator português não espanta José Filipe Pinto: "Esses atores portugueses simbolizam, ao nível destes grupos de extrema-direita, pessoas que simpatizam com aquilo que eles condenam".
"Quer dizer que estes grupos neonazis e de extrema-direita condenam tudo o que seja a globalização, tudo o que seja a multiculturalidade, tudo aquilo que assente na diversidade. E, portanto, o que é que nós percebemos? Os artistas, por norma, têm uma visão cosmopolita. E uma parte grande destes artistas, e não é apenas no caso d'A Barraca, são ou militantes ou simpatizantes de causas que, por norma, são também comuns a outros movimentos sociais". Movimentos estes opostos aos da direita.
Para o politólogo, também professor catedrático, "o que está em causa é a importância da identidade cultural. Naquilo que se chama a resistência à padronização, mas também à homogeneização e, evidentemente, à afirmação de um nacionalismo exacerbado".
Apesar de não ter dúvidas que estes casos envolvem movimentos ainda mais à direita que o partido de André Ventura, lembra que "o Chega é um partido que durante muito tempo foi antissistema e que, neste momento, apesar de integrado no sistema, não perdeu totalmente a veia antissistema. E o que é que acontece? Isto favorece também o surgimento de movimentos de protesto urbano à direita do Chega".
José Filipe Pinto defende que "há três razões" para a existência destes movimentos: "A importância da reafirmação da identidade cultural; a mobilização política, porque está em busca de formas de governo mais descentralizadas" e, por fim, a questão do "capitalismo". E, destas razões, os movimentos da extrema direita inspiram-se nos dois primeiros.
Mas não há dúvida que se está perante "um desafio ao sistema, uma reafirmação da identidade nacional, e tudo baseado numa ideologia que é, essencialmente, uma ideologia nacionalista, mas exacerbada, também com muitas marcas de nativismo e de conservadorismo".
E por isso considera que "o que aqui está é verdadeiramente uma luta, por parte deste grupo de extrema-direita, contra aqueles que ele vê como representantes ou, pelo menos, simpatizantes com tudo aquilo que eles negam". Sejam de extrema-direita ou esquerda. "Como se assumem como o povo puro, quer sejam conotados com a extrema-direita, como foi o caso, quer sejam conotados com a esquerda radical, são sempre grupos que acabam por viver apenas de acordo com a sua lógica. E ao viverem de acordo com a sua lógica, não aceitam o contraditório".
E podemos estar perante uma situação em que as pessoas se podem auto limitar para evitar problemas. Este especialista considera que "é evidente que isso vai repercutir-se negativamente na liberdade de todos aqueles que tiverem um pensamento não alinhado com eles".
"Para estes grupos que bebem no nacionalismo e no nativismo, o importante não é o Estado, é a nação. Mas eles só identificam como pertencentes à nação aqueles que eles dizem como os verdadeiros portugueses". E aqui há uma grande diferença. Quem é português? "Eles entendem que a cidadania e a nacionalidade não são a mesma coisa. O que significa que nascer em Portugal, ter um cartão de cidadão português é uma relação jurídica com o Estado". Ou seja, "não faz dele um cidadão". Na lógica destes grupos, o que é que acontece? "Sendo a nação uma criatura sociológica, só pertence à nação quem se revê nos ideais que eles entendem que identificam a identidade daquela nação".
E há uma afirmação de André Ventura que parece representar este pensamento, explica o politólogo: "Estes movimentos que dizem claramente que só é português quem pertence à nação portuguesa. Daí, por exemplo, perceba que André Ventura tenha dito que só seria presidente dos portugueses de bem. O que pressupõe que há portugueses de mal".
"A nossa segurança, neste momento, está a ser desafiada"
José Filipe Pinto não tem dúvidas de que "a nossa segurança, neste momento, está a ser desafiada pelos gangues, pelos grupos de crime organizado e, evidentemente, pelo crescimento de uma ideologia assente no nacionalismo exacerbado e, consequentemente, na xenofobia e no racismo".
"A ideia que está subjacente é que estes grupos (de extrema-direita) são os defensores da teoria que surgiu em França e que se chama 'da grande substituição'. Eles entendem que está em curso uma grande substituição. Porquê? Porque está a chegar à Europa uma imigração, essencialmente islâmica, que põe em causa a maneira portuguesa, mas também a maneira europeia de estar no mundo".
De alguma forma "consideram-se, portanto, os heraldos da identidade portuguesa e da identidade europeia. Daí eles serem muito anti-globalização, não terem nunca uma visão cosmopolita da sociedade e recusarem o multiculturalismo, porque entendem que o multiculturalismo não é fonte de riqueza. É, pelo contrário, o esbater da raça".
O importante é que se perceba, segundo o professor que estes movimentos surgem em reação "à chegada de imigrantes, à chegada de refugiados, ao peso da comunidade islâmica na Europa, e ao despertar de nacionalismos que já provocaram duas guerras mundiais e que verdadeiramente se julgava que estavam adormecidos para sempre. E não estavam".
E como se gere esta nova forma de violência, que pode atingir qualquer pessoa? "Há muito a fazer. A responsabilidade da defesa da democracia cabe à própria democracia. E o que acontece é que a democracia não pode responder a estes movimentos urbanos com os mesmos comportamentos antidemocráticos que eles manifestam".
Mas a grande responsabilidade da democracia está no "mau desempenho de parte dos representantes. O problema que nós aqui temos é um problema de falta de qualidade de representação. E essa falta de qualidade de representação leva a que os cidadãos desacreditem no sistema. E como desacreditam no sistema passam a acolher com bons olhos propostas populistas de desafiar o sistema".
E não se pense que "há receitas seguras", mas é quase certo que "o primeiro antídoto tem de passar por uma melhoria da qualidade da representação. Quer dizer que os partidos têm de perceber que não são donos da democracia, porque senão há uma partidocracia, mas também os partidos da mainstream têm de escrutinar melhor os seus representantes e tem de haver uma melhor gestão da Respública por parte dos governos. Quando isso acontecer estamos a tirar campo fértil a estes grupos para o seu crescimento".
Ressalva que ainda que é importante não responder "com uma política securitária" para não poderem se vitimizar. E alerta que "quando partidos populistas abandonam aquilo que eu chamo a periferia do sistema e entram dentro do sistema, mantendo parte da veia anti-sistema... é grave porque pode fazer uma coisa muito simples, pode fazer implodir o sistema".
"Em termos reais, o problema não é fácil de resolver, porque é evidente que é preciso que os partidos percebam que têm de ser parte da solução e não do problema", assegura José Filipe Pinto. "Enquanto a democracia não escrutinar melhor os seus representantes e não primar pela transparência na gestão da Respública, é evidente que continuamos a dar campo fértil para o crescimento destes movimentos. E a poder ter as situações violentas. A violência faz parte da história humana", conclui. Alertando que "a situação caminha para ficar descontrolada se não houver uma posição clara por parte dos partidos democráticos".