O livro de memórias do explorador russo Vladimir Arseniev, “Dersu Uzala”, que inspirou o filme “A Águia da Estepe”, dirigido por Akira Kurosawa, chega esta sexta-feira pela primeira vez às livrarias portuguesas, um século depois de ter sido originalmente publicado.
“Graças à extraordinária descrição de Vladimir Arseniev, na presente obra testemunha-se uma representação vívida da natureza e da vida dos habitantes da remota região de Ussuriiski, no Extremo Oriente”, acompanhando Dersu Uzala, membro de uma tribo quase aniquilada, que o autor descreve como o “homem perfeito”, afirmam os tradutores Larissa Shotropa e João Maria Lourenço, no prefácio do livro editado pela Tinta-da-China, na coleção de Literatura de Viagens.
Durante vários séculos esta região fez parte do Império da China do Norte, mas entre os séculos XVII e XIX foi conquistada por destacamentos russos, que a colonizaram, e os vários povos indígenas que a habitavam resistiram algum tempo, mas acabaram por ceder.
Foi no início do século XX que Vladimir Arseniev viajou pela taiga (floresta boreal da região), realizando levantamentos de percursos e pesquisas geográficas, e recolhendo material científico sobre o relevo, a geologia, a fauna e a flora destas zonas e das pequenas populações que as habitavam.
Todo este apanhado representa hoje “um tesouro antropológico imensurável”, destacam Larissa Shotropa e João Maria Lourenço.
A história desta obra é baseada nos diários de Arseniev, acerca da expedição realizada entre 1907 e 1908, que apresenta como personagem principal Dersu Uzala, um membro da tribo dos goldos, através dos olhos do narrador.
“Na taiga tudo está intimamente entrelaçado, e é aqui, nas suas condições extremas, que se manifestam as melhores e piores qualidades do ser humano”.
Foi por isso, e nesse contexto, que o autor tentou compreender em profundidade o conflito entre a natureza e a civilização, entre o “homem racional” e o “homem primitivo”.
A conclusão a que Arseniev chegou, e que descreve, é a de que “a civilização concebe criminosos”.
“O século XX tende a criar o bem-estar de alguns à conta dos outros. O declínio começa pelo comércio, seguindo-se a exploração, a escravidão, o roubo, o assassinato e, finalmente, a guerra e a revolução com todos os seus horrores”, afirma o autor, questionando-se sobre se “é isto a civilização”.
O conhecimento e as longas conversas que travou com Dersu Uzala foram determinantes para o investigador russo tentar compreender aquele que para si era o grande mistério: o velho goldo encontrava-se fora da civilização. Para que servia então a existência?
Dersu Uzala não é uma personagem inventada, era um habitante comum da taiga que havia perdido a sua família, que não possuía quaisquer bens, exceto uma velha espingarda, que não tinha estabelecido quaisquer objetivos na vida e que estava essencialmente focado em viver.
Arseniev confessa que quanto mais o observava, mais gostava dele, mais virtudes lhe descobria, até ao ponto de perceber que Dersu Uzala “atendia aos mais elevados valores cristãos”.
“Incrivelmente ingénuo, nunca usufruiu de nenhuma situação proveitosa, nunca destruiu florestas nem matou animais por diversão, nunca prejudicou as pessoas com vista ao seu próprio bem e, em essência, possuía apenas o único presente de Deus: a vida”, descreve.
Analfabeto, Dersu Uzala lia o mundo como um grande livro, nutrindo grande respeito por tudo à sua volta, chamando “pessoas” a todos os elementos da natureza, e sentindo-se igual a qualquer elemento da Terra.
Neste homem, o autor viu o ideal de homem livre que havia alcançado a felicidade.
No prefácio da obra, os tradutores sublinham que Dersu Uzala é uma personagem da literatura mundial que, antes de Arseniev, não tinha lugar.
Foi graças ao famoso filme de 1975 do realizador japonês Akira Kurosawa, inspirado nesta obra, e que lhe valeu o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, que Dersu Uzala ficou conhecido em todo o mundo.
O livro chega agora finalmente à literatura portuguesa, exatamente um século após a sua publicação original, em 1923.
Nascido em 1872, em São Petersburgo, Vladimir Arseniev foi um explorador russo, que cresceu rodeado de livros por influência do pai, que lhe deu a conhecer autores como Gogol e Tolstoi.
Arseniev iniciou-se na ciência, na botânica e na geologia através das obras de Charles Darwin e Nikolai Prjevalski, e foi nos pequenos passeios que dava com os irmãos pelos campos e na viagem com um amigo num veleiro pelo rio Tosna que nasceu o seu fascínio pela exploração territorial e a geografia.
Após a conclusão do serviço militar, Arseniev foi destacado para Lomza, tendo solicitado depois transferência para Vladivostok. Foi nas florestas do Extremo Oriente que iniciou as suas expedições, as observações científicas e os exercícios de cartografia.
Em 1902, com 30 anos, Arseniev partiu com o exército czarista para a Sibéria, onde fez três expedições e conheceu o nativo e caçador Dersu Uzala, que veio a tornar-se o seu guia, e com quem construiu uma profunda relação de amizade.
Arseniev morreu em 1930, aos 57 anos, durante uma das suas muitas expedições pela taiga, em que contraiu uma pneumonia fatal.