De que vale a tristeza de von der Leyen? - TVI

De que vale a tristeza de von der Leyen?

    André Carvalho Ramos
  • 27 fev 2023, 11:03

Os corpos vão sendo retirados do mar, mas alguns nunca aparecerão. Nenhum é loiro e de olhos azuis. São iranianos, onde o regime persegue aqueles que ousam desafiar a ditadura; da Somália, onde os terroristas ao Al Shabaab matam indiscriminadamente e as alterações climáticas deixam milhões a morrer de fome; do Paquistão, onde a onda de violência armada só agrava a vida de tantos, já castigados pelas inundações históricas no país; ou do Afeganistão, onde a repressão Taliban não deixa outra alternativa a não ser fugir. “Procuram uma vida melhor”, diz-se recorrentemente sobre estas pessoas. É preciso corrigir esta ideia errada. Procuram uma vida. Ponto. Enquanto milhões de refugiados ucranianos têm uma via verde para fugir da guerra e entrar na Europa, outros morrem nas fronteiras cada vez mais impenetráveis.

A presidente da Comissão Europeia foi rápida na reação triste e consternada à morte de dezenas de pessoas na costa da Calábria, em Itália, ignorando o esforço que tem sido feito pelas autoridades europeias para tornar a vida destas pessoas num inferno ainda pior. Chamar-lhe crise de refugiados é colocar o ónus nestas pessoas, provocadoras de “crises” na Europa, quando, na verdade, o que existe é uma crise política para responder adequadamente aos compromissos que os países europeus teimam em não cumprir. Este barco saiu da Turquia, a quem a União Europeia pagou seis mil milhões de euros para evitar novas partidas. Com dinheiro, os europeus tentaram fechar a rota migratória para a Grécia. Hoje sabemos que muitos contornam a costa grega para chegar a Itália a partir de território turco, tornando a viagem incomparavelmente mais perigosa. Em 2020, Ursula von der Leyen visitou a Grécia para agradecer-lhe ser o “escudo” da Europa. A escolha de palavras importa e é reveladora da política omissa dos estados europeus. Um escudo é algo usado para proteger de um ataque; estas pessoas são encaradas como uma ameaça, mesmo que não haja razão para tal.

A União Europeia retirou do mar todos os meios de resgate. Há meios aéreos que vigiam, mas não resgatam. As únicas missões de busca e de salvamento são de organizações não-governamentais, perseguidas pela justiça de países como Itália, acusadas de auxilio à imigração ilegal. O novo pacto para as migrações e asilo da União Europeia, apresentado em 2020, pretendia ser “um novo começo” para a política migratória, mas revelou-se vazio. É uma continuidade do que já existia. Não há mecanismos eficazes que permitam uma via regular de entrada na Europa, os sistemas de asilo são os mesmos de há 20 anos: estão obsoletos e sobrecarregados. Mesmo assim, a Europa provou ser capaz de uma solidariedade sem precedentes com a guerra na Ucrânia. De forma automática, concedeu proteção internacional aos ucranianos em fuga da ofensiva russa, ignorando os sírios que também sofreram com bombardeamentos decretados por Vladimir Putin. Aleppo sofreu tanto como Mariupol. A guerra na Ucrânia revelou a falta de interesse da Europa em acolher cidadãos do Médio Oriente ou Norte de África e essa é a fronteira mais difícil de ultrapassar: a ideológica. Os que tiveram mais sorte e não acabaram nas praias da Calábria. Podem ter sobrevivido, mas hoje vivem na rua numa violação atroz da Lei Internacional que obriga os estados acolher estas pessoas enquanto decorre o processo de asilo. Alguns até estão sem-abrigo no coração da Europa, a dormir debaixo da ponte, a dois quarteirões da sede da Comissão Europeia em Bruxelas.

Se fossem loiros e de olhos azuis beneficiariam do esforço hercúleo da Europa. Como não são, acabam lavados nas costas de Itália.

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