No último Festival Veneza, o novo filme de Woody Allen, “Golpe de Sorte”, foi aplaudido pelo público de pé durante cinco minutos. Ao mesmo tempo, na rua, em frente à sala de cinema, um grupo de manifestantes criticava o festival por lhe dar uma plataforma e protestava contra “a cultura de violação”. Faixas com as frases “Ilha de violadores” e “Não há leão de ouro para predadores” foram colocadas pela cidade para protestar contra a presença de Allen e também de Roman Polanski, cujo filme "O Palácio" concorria ao prémio principal deste ano.
Longe vão os tempos em que o génio de Woody Allen era elogiado unanimemente por críticos e pelo público, que aguardava com expectativa a estreia de mais um filme do autor de “Annie Hall” (1976), “Manhattan” (1979), “Zelig” (1983), “A Rosa Púrpura do Cairo” (1984) ou “Ana e as Suas Irmãs” (1986). Nesses anos, Allen tornou-se o argumentista e realizador de uma cidade - Nova Iorque - e o porta-voz de uma geração de intelectuais que maldizia os blockbusters e enfrentava os seus demónios no divã do psicanalista. O herói dos seus filmes, quase sempre interpretado por ele próprio, não tinha músculos nem valentia, pelo contrário, é neurótico, cheio de tiques, inseguranças, frases confusas e intermináveis. Debate-se com dúvidas e contradições, sobrevive à custa da autoironia, um humor autodepreciativo que põe os espectadores a rir das situações mais confrangedoras.
Diane Keaton e Mia Farrow foram as suas primeiras musas, dentro e fora do ecrã. Mas, depois, todas as estrelas de Hollywood queriam trabalhar com ele, era uma marca de prestígio e selo de qualidade. Em “Toda a gente diz que te amo” (1996), por exemplo, teve Drew Barrymore, Goldie Hawn, Edward Norton, Natalie Portman, Julia Roberts e Tim Roth. Em “Celebridades” (1998) juntou Kenneth Branagh, Winona Ryder, Leonardo DiCaprio, Melanie Griffith e Charlize Theron. Nas últimas duas décadas, o seu cinema começou a acusar algum cansaço - afinal, é difícil manter o ritmo de fazer (quase) um filme por ano - mas ainda tivemos bons momentos com “Match Point” (2005), com Scarlett Joahnsson, “Meia-Noite em Paris” (2011), com Owen Wilson e Rachel McAdams, ou “Blue Jasmim” (2013), com Cate Blanchett. Ao longo da sua carreira, Woody Allen ganhou quatro Oscares, entre muitas outras nomeações e premiações.
O que aconteceu, entretanto?
Aconteceu o movimento #metoo, que rebentou em 2017, mudando para sempre a maneira como as denúncias de assédio e abuso são vistas pela sociedade. Um dos artigos mais relevantes publicados então sobre Harvey Weinstein foi assinado por Ronan Farrow, um dos filhos adotivos de Mia Farrow e grande apoiante da sua irmã, Dylan Farrow – filha adotiva de Woody Allen com a ex-parceira Mia Farrow, que, em 1992, quanto tinha apenas sete anos, acusou Allen de a ter agredido sexualmente. As alegações foram investigadas duas vezes, mas nenhuma acusação foi apresentada e Woody Allen manteve sempre a sua inocência. E tinha conseguido, em grande medida, que esta suspeita não afetasse a sua reputação como cineasta. No entanto, neste novo contexto, as reafirmações das alegações de Dylan e do seu irmão Ronan Farrow levaram muitos a condenar Allen. As redes sociais fizeram o resto, colocando o tema de novo na atualidade. Em 2021, um documentário na Netflix contava em pormenor toda a história, do ponto de vista de Mia e Dylan.
Woody Allen recusou-se a colaborar nesse documentário. “É tão absurdo, mas a difamação permanece”, disse, numa entrevista por essa altura. O realizador lançou uma autobiografia, "A Propósito de Nada", mas, de uma maneira geral, optou por se manter afastado dos olhos do público. A presença de Allen em Veneza marcou a sua primeira aparição num grande festival de cinema desde 2016, quando estreou “Café Society” em Cannes. Na conferência de imprensa, o autor de 87 anos refletiu sobre a sua vida e a sua carreira. “Tive muita, muita sorte. Tive sorte durante toda a minha vida”, disse. “Tive dois pais amorosos e bons amigos. Tenho uma esposa e um casamento maravilhosos, duas filhas”, acrescentou, referindo-se à sua esposa, Soon-Yi Previn - outra filha adotiva de Mia Farrow, com quem Allen se casou em 1997, em mais um momento polémico da sua vida, quando ela tinha 27 anos e ele 62. O casal tem duas filhas, Bechet Allen e Manzie Tio Allen.
O novo filme, que agora se estreia em Portugal, “Golpe de Sorte”, é um thriller com algumas notas de comédia, falado em francês e protagonizado pelos atores Lou de Laâge, Valérie Lemercier, Melvil Poupaud e Niels Schneider. O filme segue um casal, Fanny e Jean, cujas vidas aparentemente perfeitas em Paris são perturbadas quando Fanny se apaixona por um antigo colega de escola, Alain. Trata-se de uma história sobre ciúmes, poder, romance e infidelidade conjugal onde o acaso e as coincidências têm um papel determinante.
Apesar de não falar francês, Woody Allen não hesitou em realizar um filme inteiramente falado nesse idioma. “Quando vemos um filme japonês, podemos dizer se a atuação é boa, realista e natural ou se é dramática ou muito exagerada”, justificou. “A mesma coisa aqui. Eu poderia dizer pela linguagem corporal e pela emoção dos atores, mesmo sem entender a língua, quando eles estavam a ser realistas ou não.” Na apresentação, em Veneza, o realizador reafirmou a sua paixão pela Europa e pelo cinema europeu. “Quando era mais jovem, os filmes que mais nos impressionavam quando estávamos todos a começar e sonhávamos ser cineastas eram os do cinema europeu, todos os filmes franceses, os filmes italianos, os filmes suecos”, disse. “Todos queríamos fazer filmes como os europeus.”
Woody Allen, que sempre foi muito acarinhado pelo público na Europa, já trabalhava com produtores europeus e já tinha filmado em Espanha, em França, no Reino Unido e em Itália. Portanto, nada disto é novo. Mas também é verdade que se tornou cada vez mais complicado para ele trabalhar nos EUA. Na sequência das novas afirmações de Dylan Farrow, várias estrelas americanas disseram que se arrependem de ter trabalhado com Allen no passado e que não trabalhariam com ele novamente. Em 2018, o contrato de quatro filmes do realizador com a Amazon foi cancelado em parte, aparentemente, em reação aos comentários jocosos de Woody Allen em relação o movimento #metoo. Ele processou o estúdio, exigindo uma indemnização de 68 milhões de dólares, mas o caso foi resolvido através de um acordo. O processo atrasou o lançamento de "Um dia de chuva em Nova Iorque", com Timothée Chalamet, Elle Fanning, Selena Gomez e Jude Law - filmado em 2017, em plena contestação do movimento #metoo, foi "renegado" pelas estrelas antes mesmo de chegar às salas em 2019. Chalamet, por exemplo, doou o seu cachet a uma associação que apoia a comunidade LGBT de Nova Iorque e lamentou ver o seu nome associado ao de Woody Allen.
Numa entrevista recente, a Variety perguntou a Woody Allen se ele se sentia cancelado: “Eu simplesmente acho isso tudo tão ridículo. Não penso nisso. Não sei o que significa ser cancelado. Ao longo dos anos tudo tem sido igual para mim. Eu faço meus filmes. A minha rotina é a mesma. Eu escrevo o argumento, angario o dinheiro, faço o filme, edito, ele estreia. A diferença não é da cultura do cancelamento. A diferença é a forma como apresentam os filmes. É essa a grande mudança", disse, referindo-se ao surgimento das plataformas de streaming e ao facto de os filmes ficarem pouco tempo nas salas de cinema.
E em sua defesa: “Fiz 50 filmes. Sempre tive papéis muito bons para mulheres, sempre tive mulheres na equipa, sempre lhes paguei exatamente a mesma quantia que pagávamos aos homens, trabalhei com centenas de atrizes e nunca tive uma única reclamação de nenhuma delas em nenhum momento. Ninguém disse: ‘Trabalhar com ele foi mau ou ele assediou-me’.”
Numa passagem, no mês passado, por Portugal, no âmbito de uma digressão da New Orleans Jazz Band, na qual é clarinetista, e também para promover o novo filme e mais um livro, "Gravidade Zero", Woody Allen deu várias entrevistas, incluindo uma conversa pública com Ricardo Araújo Pereira, que se realizou numa sala lotada da Cinemateca Portuguesa. Em nenhuma das entrevistas referiu o caso Dylan Farrow. Em todas elas falou da sorte que teve ao longo da sua vida e de não recordar "momentos maus", quase como se quisesse apagar aquele episódio da sua memória.
Em entrevista à Lusa, Woody Allen afirmou que lhe é indiferente o que pensam de si ou dos seus filmes: “Acham-me um génio ou um idiota, não me interessa”. “Sou muito focado. Quando um filme está concluído para mim já era, acabou, nunca mais o volto a ver na vida e depois faço o próximo. Não leio sobre ele, se as pessoas gostaram, se fez ou não dinheiro, se acham que é espetacular ou o odiaram. Faço o filme seguinte. É o que tenho feito nos últimos 50 anos, focado no meu trabalho e não focado nas coisas sem importância”, afirmou.
No entanto admitiu que já não sente uma compulsão para fazer cinema. Envelheceu, está cansado e fazer filmes já não é tão divertido como costumava ser. Por isso, “Golpe de Sorte” pode muito bem ser o último da carreira. “É sempre difícil angariar dinheiro para filmes e é aborrecido. Se alguém me ligar e disser que financia o meu filme, tudo bem. Mas não me apetece ligar, ir a almoços, a reuniões e arranjar dinheiro. Se alguém se chegar à frente, eu talvez considere fazer o filme. Mas isso não acontece com frequência. […] Quero fazer outro filme? Não sei, talvez sim, talvez não. Quero escrever algo para teatro? Escrever um livro, talvez um romance? Não sei."