Um vírus "adormecido" que está a reaparecer em pessoas por todo o mundo: porque cada vez mais ouvimos falar da zona? - TVI

Um vírus "adormecido" que está a reaparecer em pessoas por todo o mundo: porque cada vez mais ouvimos falar da zona?

Zona (herpes zoster) Getty Images

A incidência da zona tem vindo a aumentar em vários países de todo o mundo nas últimas décadas. Os especialistas apontam várias razões para este aumento, desde a covid-19 à varicela e ao aumento da esperança média de vida

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Sensação de ardor, vermelhidão, comichão e pequenas bolhas líquidas. A zona (como é conhecido o herpes zoster) é fácil de identificar pela forma como se manifesta na pele, geralmente numa zona específica do corpo. Trata-se de uma reativação do vírus varicela-zoster, o mesmo vírus que causa a varicela, daí que só se manifeste em pessoas que já tenham tido esta doença. Mas por que razão parece que temos cada vez mais casos de zona?

Até hoje, ainda não se sabe o que desencadeia esta reativação do vírus. Sabe-se, porém, que, a partir do momento em que temos varicela, o vírus varicela-zoster fica para sempre no nosso organismo, ainda que de forma latente, isto é, como se estivesse “adormecido” ao longo dos anos. “Os vírus ficam latentes nos gânglios dos nervos e depois, por qualquer motivo, migram através dos nervos sensitivos e provocam aquelas lesões na pele, as vesículas”, explica à CNN Portugal o infeciologista António Sarmento, diretor do Serviço de Infeciologia do Hospital de São João, no Porto.

Sabe-se também que a reativação deste vírus tende a ocorrer em pessoas de idade mais avançada, sobretudo a partir dos 60 anos. António Vilar, presidente da Sociedade Portuguesa de Reumatologia (SPR) e reumatologista do Hospital Lusíadas, indica que a partir dos 80 anos de idade “tem-se duas vezes mais risco do que acima dos 60, e quatro vezes mais risco do que abaixo dos 40”, o que demonstra que a idade é um dos fatores de risco da zona.

Também as pessoas com sistema imunitário debilitado se incluem na população de risco desta doença. “Os doentes que fazem corticoides em dose alta, que estão a fazer quimioterapia, ou que estão a fazer imunossupressores porque fizeram transplante, por exemplo, geralmente têm uma incidência maior de zona, que muitas vezes até se manifesta de forma disseminada por todo o organismo”, refere o infeciologista António Sarmento.

“Depois há pessoas que, sem se saber porquê, têm um, dois ou três episódios [de zona] durante a vida, e não há nada que aparentemente justifique isso”, acrescenta o responsável do Serviço de Infeciologia do São João. Aliás, “há determinadas épocas do ano em que há mais episódios de zona, sem que se saiba o porquê”, aponta António Sarmento.

"E não é por se contagiarem uns aos outros, porque a zona não se contagia", salienta o infeciologista. Ao contrário da varicela, que é altamente contagiosa, a zona tem a particularidade de não se transmitir de pessoa para pessoa, mas de poder transmitir varicela a quem nunca a teve. Mas isto só acontece se a pessoa que nunca teve varicela, nomeadamente uma criança, tocar nas lesões da pele, explica o dermatologista Luís Uva, diretor clínico da Personal Derma, em Lisboa.

De acordo com o infeciologista António Sarmento, a incidência da zona tem vindo a aumentar em vários países de todo o mundo nas últimas décadas, nomeadamente nos Estados Unidos. “Até se pensou que pudesse ser uma consequência da vacina da varicela, mas depois chegou-se à conclusão que nos países onde não se faz a vacina da varicela também se tem registado um aumento de casos”, aponta.

Em Portugal, os dados relativos à zona são bastante limitados, provavelmente porque esta não é uma doença de notificação obrigatória, sendo, por isso, mais difícil de perceber a sua incidência. Ainda assim, estima-se que entre 10 a 30% da população seja afetada pela reativação do vírus varicela-zoster, refere-se num estudo publicado em 2020 na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.

António Sarmento adianta que o hospital São João tem tido “muitos casos de internamentos por zona”, e justifica esse aumento com o facto de esta doença estar a aparecer “cada vez mais em imunodeprimidos”, onde a reativação do vírus se manifesta de forma mais grave.

“Enquanto numa pessoa imunocompetente as lesões aparecem numa faixa de pele, no imunodeprimido aparecem em duas ou três zonas da pele diferentes, abrangendo uma área mais extensa, porque afetam três ou quatro nervos diferentes. Ou então, na pior das hipóteses, há uma infeção disseminada pelo organismo todo: pode afetar o fígado, levando a uma hepatite fulminante, pode afetar todos os órgãos e pode mesmo levar a morte”, explica o infeciologista, ressalvando que estas situações são raras.

Além dos doentes imunodeprimidos, o internamento de um doente com zona também se justifica quando a reativação do vírus ocorre num nervo oftálmico, que pode comprometer a visão. “Se não for de imediato observado por um oftalmologista e fizer terapêutica endovenosa, pode levar à cegueira”, adverte António Sarmento. 

 Quando as lesões atingem a parte superior da face, há o risco de os olhos serem afetados, o que pode comprometer a visão e provocar cegueira (Fotografia: GettyImages)

Ainda há muitas questões em torno do porquê da reativação do vírus da varicela zoster, tal como ainda há muitas dúvidas em relação à covid-19 - duas infeções víricas que estão a ser amplamente estudadas pela comunidade científica. Um estudo publicado em maio deste ano na revista Open Forum Infectious Diseases sugere que “o diagnóstico de covid-19 em pessoas com idade igual ao superior a 50 anos está associado a um risco significativamente aumentado de desenvolver herpes zoster”.

Questionado sobre se há realmente uma relação entre a covid-19 e um aumento de casos de zona, o infeciologista António Sarmento deixa essa possibilidade em aberto e dá como exemplo o que acontece noutras infeções víricas, como o vírus da gripe.

“Ninguém pode dizer que não seja [da covid-19]. A seguir à gripe, que é uma infeção vírica, é muito frequente aparecerem outras infeções, que já não têm nada que ver com a gripe, porque o próprio vírus da gripe mexeu com a nossa imunidade. Por exemplo, a seguir a uma gripe forte aparece com maior incidência uma pneumonia pneumocócica. Portanto, não temos dúvida que pode aumentar a incidência, porque os vírus mexem realmente com a nossa imunidade”, explica António Sarmento.

O reumatologista António Vilar, por sua vez, diz não ter perceção de que haja efetivamente um aumento do número de casos de zona em Portugal, pelo menos no seu consultório, mas atribui o crescimento mundial desta infeção à “imunidade de grupo” do vírus da varicela e ao aumento da esperança média de vida. “A esmagadora maioria da população já teve contacto com o vírus da varicela, o que aumenta o risco de reativação do vírus”, explica o responsável da SPR.

A complicação mais comum da zona é a chamada nevralgia pós-herpética, uma dor que costuma surgir já depois da cicatrização das bolhas e que pode ser incapacitante, sendo equiparável à sensação de “picadas ou queimaduras”, podendo prolongar-se “durante semanas ou meses, e muito raramente durante anos”, explica António Vilar. O tratamento passa pela administração de antivirais, o aciclovir e valaciclovir, que, de acordo com o reumatologista, “se forem administrados nas primeiras 24 a 48 horas, reduzem o risco da dor”.

O dermatologista Luís Uva alerta também para a sobreinfeção bacteriana que pode ocorrer quando "as bactérias que temos na pele aproveitam as entradas das lesões cutâneas e provocam uma infeção". Há quem se queixe também muita comichão na região afetada, podendo sentir vontade de coçar as lesões, algo que não é de todo aconselhável. O dermatologista considera importante, por isso, a utilização de antibióticos tópicos que previnam essa sobreinfeção.

A vacina Shingrix foi aprovada pelo Infarmed em 2018 e demonstra uma eficácia superior a 90% na redução das complicações da zona (Fotografia: GettyImages)

Além dos antivirais, já temos hoje uma vacina que garante uma eficácia superior a 90% na proteção contra a nevralgia pós-herpética. Quer isto dizer que não atua na prevenção da zona, mas sim na redução das complicações da doença, como a dor prolongada. Aprovada pelo Infarmed em 2018, a vacina Shingrix está indicada para adultos com idade igual ou superior a 50 anos que já tenham tido varicela e para doentes imunodeprimidos. O esquema de vacinação consiste na administração de duas doses intramusculares com espaçamento de dois a seis meses entre elas.

É importante salientar que a Shingrix não é comparticipada, tendo um custo de 179,60 euros. Tendo em conta as estimativas da incidência da zona em Portugal, alguns especialistas defendem a necessidade de recomendar a vacinação a todas as pessoas com idade mais avançada.

Porém, o reumatologista António Vilar argumenta que, “em termos de saúde pública, não se justifica” vacinar a população de forma generalizada. “A alternativa, em termos de saúde pública, seria tratar centenas de milhares de pessoas para evitar uma complicação de uma doença que na generalidade é incómoda, mas que é benigna”, salienta.

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