Todas as semanas, publicamos um conto ficcional sobre o amor, a partir de um caso real
Adoro o meu noivo, mas não suporto a família dele. Parece simples, mas não é. Dito assim, soa a capricho, a problema menor, mas na realidade é um nó apertado no meio da minha vida, que me impede de respirar em paz.
Chamo-me Alice e conheci o Gustavo em Florença. Ambos portugueses, ambos a fazer mestrado, ambos calados, introvertidos. Estávamos deslocados, estrangeiros num país que, aos poucos, se tornava casa, e foi precisamente nesse desencontro que nos encontrámos. Passámos dois anos mergulhados naquele sonho italiano: cafés silenciosos nas esquinas, onde o cheiro do expresso se confundia com o das páginas antigas dos livros; passeios sem destino pelas ruas de pedra, em que cada passo soava como um compasso cúmplice; livros nas mãos e sorrisos contidos, sempre tímidos, sempre nossos. Vivíamos num mundo suspenso, um universo só nosso, tranquilo, sem pressa, sem ruído, como se Florença tivesse sido feita de propósito para acolher dois jovens que só queriam existir um no silêncio do outro.
Quando regressámos a Portugal, a vida pareceu natural. Mudámo-nos juntos para um pequeno apartamento em Lisboa, entre livros empilhados em estantes improvisadas e plantas alinhadas no parapeito da janela. A rotina era simples: ele lia ao meu lado, eu cozinhava receitas que lembravam Itália, havia música baixa a preencher o espaço. Falávamos de casar, de futuro, de filhos, e parecia tudo tão fácil. Até que a família dele entrou em cena.
A primeira visita foi um choque. O barulho entrou pela casa como uma enxurrada, engolindo o silêncio que sempre nos pertencera. Vozeirões que se sobrepunham uns aos outros, gargalhadas altas, conversas a correrem soltas, saltando de um assunto a outro sem qualquer lógica. Eu tentava acompanhar, mas sentia-me perdida, como se falassem todos uma língua que não era a minha. A cunhada dele não parava de mexericar, sempre com um comentário afiado pronto, como se fosse um jogo para testar até onde eu aguentava. A mãe observava tudo com olhos críticos, um olhar avaliador que me fazia sentir numa prova de acesso invisível. E havia sempre pequenas farpas disfarçadas em perguntas inocentes: “A Alice não cozinha?”, “A Alice não passa a roupa?”. Até uma ex-namorada, fantasma incômodo, parecia ter lugar reservado à mesa, evocada vezes sem conta como se fosse a medida pela qual eu devia ser comparada.
Senti-me deslocada, apertada, como se estivesse numa sala de espelhos onde cada reflexo mostrava uma versão distorcida de mim — uma mulher que eu não era, mas que parecia ser a que eles esperavam.
Pensei que seria só um primeiro encontro estranho. Mas não foi. As visitas seguintes repetiam o mesmo padrão: o mesmo ruído, o mesmo sufoco, os mesmos comentários disfarçados. O desconforto não diminuía; pelo contrário, crescia, multiplicava-se como uma sombra que se alonga com o cair da tarde.
E não era apenas em jantares ocasionais. A mãe e a cunhada estavam sempre presentes na nossa vida, todos os fins de semana, como uma sombra que não se desfaz. A mãe entrava em casa sem pedir licença, abria portas, mudava pratos e copos de lugar, comprava jarras que eu não queria, fazia comentários à minha roupa como se fosse dona do meu corpo e da minha vida. Não havia limites. A casa, que deveria ser o nosso refúgio, transformava-se num palco aberto, invadido sem aviso.
O Gustavo? Ele parecia indiferente, ou talvez anestesiado por anos de convivência com aquela família. Sorria de forma automática, falava pouco, deixava-se levar pela corrente, como se não tivesse vontade nem energia de remar contra ela. Para ele, aquelas vozes altas eram apenas ruído de fundo; para mim, eram um vendaval a rasgar-me os nervos.
Não me socorria, não me ajudava. Eu ficava ali, sentada entre comentários velados, olhares avaliadores e risinhos disfarçados, como uma estrangeira num país cuja língua não compreende. Esperava um gesto, uma palavra, uma mão no meu ombro. Algo que me dissesse: “Estou aqui, não estás sozinha”. Mas ele nunca intervinha. Nunca quebrava o ritmo dos outros para me defender. Nunca se colocava entre mim e aquele desconforto.
Sentia-me indefesa. Como uma criança perdida no meio de uma multidão barulhenta. Como um soldado sem armadura num campo de batalha. Cada frase que me dirigiam era uma seta, e eu ali, exposta, sem escudo, a tentar sorrir para parecer forte enquanto, por dentro, só queria desaparecer.
E o pior não eram só as palavras. Era o silêncio dele. O silêncio cúmplice, resignado, anestesiado. Ele parecia estar em casa; eu, exilada. Ele parecia imune; eu, ferida. Ele era o porto seguro da minha vida, mas ali tornava-se um estranho, um espectador que me deixava naufragar sozinha.
Quando estávamos sós, eu ardia por dentro, cheia de palavras não ditas; ele, sereno, como se nada tivesse acontecido. Eu esperava que ele perguntasse: “Estás bem? Como te sentiste?” Mas nada. Apenas o peso do meu próprio coração, cada vez mais pesado, cada vez mais só.
E era aí, nesses regressos a casa, que o amor se confundia com dúvida. Como podia amar tanto alguém e, ao mesmo tempo, sentir-me tão sozinha ao lado dele? Como podia ele pertencer àquela família? Não fazia sentido.
E agora fico a pensar: caso ou não caso? Adoro o Gustavo com todo o meu coração, mas a presença constante da família dele é uma nuvem negra que paira sobre a nossa felicidade. Sinto-me dividida entre o amor que nos une e o desconforto que me consome. É estranho, doloroso, e sobretudo confuso. Como casar com alguém cujo mundo familiar é um território hostil para mim?
Talvez o verdadeiro desafio seja aprender a conviver com isso, a erguer barreiras invisíveis que me protejam sem o afastar. Ou talvez seja aceitar que nem todo o amor vem acompanhado de tranquilidade, que algumas histórias de amor também carregam espinhos.
No fim, sei apenas uma coisa: amo-o. Mas esse amor, por si só, não é suficiente para apagar o desconforto que sinto. Caso ou não caso? Talvez a resposta esteja em encontrar um caminho entre os dois — entre o amor que me segura e o desconforto que me empurra.
Este conteúdo contou com a participação de inteligência artificial na sua elaboração.
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