Todas as semanas, publicamos um conto ficcional sobre o amor, a partir de um caso real
Chamo-me Maria da Piedade, mas quase toda a gente me chama apenas Piedade. Alguns, mais íntimos, tratam-me por Pipas ou Pipinha. Tenho 25 anos e cresci em Cascais, num ambiente afluente, entre vivendas com vista para o mar, piscina, férias na neve e verões eternos na praia. A minha família sempre viveu assim, num conforto que já vem de gerações passadas. Não há memória de dificuldades, de apertos, de escolhas difíceis.
O meu pai sempre se dedicou aos negócios — nunca percebi bem ao certo o que fazia, mas bastava para sustentar a vida abundante em que crescemos. Do lado da minha mãe, herdei o gosto pela arte. Foi com ela que aprendi a amar a pintura, a música, as exposições. Desde pequena respirei esse universo, e talvez por isso nunca tenha havido dúvidas quanto ao meu caminho. Estudar Belas Artes foi natural, e na família diziam, a brincar, que eu era a “menina alternativa”.
Primeiro em Milão, onde aprendi a disciplina e a tradição da pintura. Depois em Londres, no mestrado, onde descobri a liberdade, a mistura, as fronteiras borradas entre géneros e linguagens. Londres deu-me aquilo que Cascais nunca poderia dar: a sensação de que podia reinventar-me, de que havia mais mundo para além do círculo apertado onde sempre vivi.
Cresci numa casa grande, com as minhas duas irmãs. A Rosarinho casou muito nova e já está à espera de bebé. Sempre se esperou o mesmo de mim: que seguisse esse guião, sem desvios, sem sobressaltos. A Isabelinha continua em casa, dedicada à equitação, mais próxima da rotina dos meus pais.
Depois de Londres, voltei a Lisboa ainda sem saber bem o que queria fazer. Foi a minha tia que sugeriu um estágio numa galeria de arte. Aceitei. O espaço era trendy, cheio de gente diferente, uma Lisboa mais crua, mais viva, que me lembrava a energia londrina. Eram sobretudo pessoas da minha idade, com outras vivências, outros códigos. No final do dia, iam beber um copo e eu forçava-me às vezes a ir também, para me integrar e por curiosidade. Foi a primeira vez que me senti verdadeiramente fora da minha bolha.
Foi nesse ambiente que conheci o Hugo. Ele fazia parte do grupo, mas desde o início manteve uma distância fria comigo. Eu era a betinha, a privilegiada — e ele não escondia isso nas discussões que tínhamos. Muitas vezes, eu ia para casa a remoer nas nossas trocas de palavras, a preparar respostas para o dia seguinte. E, sem perceber bem como, ele foi-se entranhando em mim.
O Hugo era tudo o que os rapazes da minha vida nunca tinham sido. Cresceu num bairro periférico de Lisboa, filho de mãe solteira, num apartamento pequeno, sem livros nas estantes, sem quadros nas paredes, sem jantares bonitos com loiças caras. Sem férias no estrangeiro, sem privilégios. Trabalhou desde cedo num bar para ajudar em casa, não foi para a universidade, e foi morar sozinho aos 18 anos.
Criava arte com uma urgência visceral, com uma verdade que me despia por dentro: quadros enormes, que gritavam desespero, pujança e paixão crua. Por fora, parecia duro como pedra; mas por dentro, ardia-lhe um fogo de justiça, de princípios e de lealdade absoluta. Incapaz de ser injusto, desonesto ou ingrato, cada gesto seu parecia feito para desafiar a indiferença do mundo. Quanto mais o conhecia, mais me rendia à sua força silenciosa e ao seu olhar que sabia ouvir até o que eu não dizia.
Além disso, achava-o lindo. Aqueles olhos negros e doces, o cabelo ondulado, a altura imponente, o timbre da voz que me fazia esquecer tudo o resto. Ele era diferente de tudo o que eu conhecia, como se existisse num ritmo próprio, alheio às convenções que me cercavam. Começámos a sair juntos, e eu mergulhei naquela relação sem hesitar, deixando-me levar por cada instante, cada olhar, cada palavra.
Na intimidade, descobri sensações que nunca tinha vivido. Perdi a vergonha, senti-me inteira, entregue a algo que era só nosso, como se cada toque e cada gesto criassem um mundo à parte. Ansiava pelo corpo dele, pela proximidade, pelo calor e pelo ritmo único que nos ligava, como se nada mais existisse para além daquele instante.
Em casa, começaram as perguntas.
“Pipas, porque é que fica em Lisboa até tão tarde?”
“Com quem anda sempre?”
No início, ainda me ria e respondia com evasivas, inventava jantares com colegas da galeria, encontros casuais com amigas que já quase não via. E tentava estar em todo o lado: jantares de família, festas de anos, almoços de domingo, cafés com as minhas amigas de sempre — e, ao mesmo tempo, as noites longas com o Hugo. Mas era impossível viver em duplicado. Andava sempre cansada, sempre a correr, com a sensação de que estava a enganar toda a gente, até a mim própria.
A certa altura, cansei-me de inventar desculpas. Sentia que a cada mentira me afastava mais de quem era, ou de quem queria ser. A minha família notava, claro: os olhares demorados da minha mãe à mesa, o silêncio desconfortável do meu pai quando eu chegava tarde, o ar curioso — quase divertido — da Rosarinho quando ia lá a casa, como se esperasse que a farsa caísse a qualquer momento.
Comecei a perceber que não era só uma questão de horários ou ausências. Era a vida dupla que levava. De um lado, a filha obediente, presente, polida, a “menina alternativa” mas dentro dos limites do aceitável. Do outro, uma rapariga apaixonada, a descobrir um mundo que não tinha nada a ver com o da casa com vista para o mar.
E quanto mais o tempo passava, mais difícil era esconder o Hugo.
Decidi levar a Isabelinha a conhecê-lo e combinei um jantar no centro de Lisboa com o Hugo e outros amigos. Foi um erro. Ela apareceu vinda de uma prova de equitação, corada e com botas de montar, e odiou tudo, não percebeu nada. “Não entendo o que vês nestas pessoas”, disse-me, gelada.
Do outro lado da mesa, eles gozavam discretamente com o ar afetado dela, troçando com a maneira como falava, com cada gesto medido. Compreendi, de repente, o fosso que nos separava. Senti-me sozinha, presa entre dois mundos que nunca iriam se tocar completamente.
A Isabelinha contou tudo à minha mãe e acabamos por conversar. Sentei-me à sua frente, tentando escolher as palavras com cuidado, mas deixando transparecer a verdade que já não podia esconder. Por um momento fiquei à espera de compreensão. Mas não veio. A expressão dela endureceu, os lábios comprimidos, os olhos a fuzilar-me com desaprovação. “Piedade… eu não quero sequer ouvir falar dessa história absurda”, disparou, sem espaço para argumentos. A distância entre nós parecia crescer a cada segundo, e senti-me impotente.
Pensei que o meu pai poderia ser mais flexível, mais aberto. Enganei-me. Quando tentei falar com ele, a sua reação foi diferente, mas igualmente definitiva: um silêncio frio, acompanhado de um olhar grave, que dizia sem palavras que, para ele, Hugo era uma ameaça à ordem que sempre prezou. Nenhuma palavra poderia justificar o meu afeto; nenhum argumento poderia fazê-lo mudar de ideia.
Naquele momento, percebi que ambos reagiam como se o Hugo fosse um intruso num mundo perfeito que construíram para mim, um mundo de regras, aparências e seguranças que não admitia desvios. Cada gesto dele, cada escolha, cada forma de ser parecia-lhes uma ameaça, como se o simples fato de ele existir pudesse abalar a estrutura cuidadosamente montada à minha volta. E eu… eu estava a tentar viver algo que eles não podiam compreender nem aceitar, tentando equilibrar-me num fio invisível entre dois universos que pareciam incompatíveis.
E eu… eu gosto dele. Muito. A sua presença preenche-me de uma forma que nada nem ninguém na minha vida anterior conseguiu. Só não sei como conciliar estes dois mundos tão diferentes: o conforto herdado, as expectativas, o mundo polido que sempre conheci, e a intensidade, a verdade crua e o caos do que escolhi viver com ele.
Este conteúdo contou com a participação de inteligência artificial na sua elaboração.
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