Abandonei o meu filho: «Senti que ele era mais feliz com outras pessoas» - V+ TVI1224
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Abandonei o meu filho: «Senti que ele era mais feliz com outras pessoas»

  • Redação V+ TVI
  • 18 out, 09:09

Quando percebemos que o amor pelos outros não é maior do que o amor próprio

Todas as semanas, publicamos um conto ficcional sobre o amor, a partir de um caso real

Até aos trinta e cinco anos, vivi na casa dos meus pais.

Era uma casa grande demais para três pessoas que quase não se falavam. As janelas eram altas, e nas tardes de domingo o sol entrava sem convite, iluminando o pó suspenso no ar — partículas douradas de um tempo que não passava. A minha mãe passava o dia entre tachos e toalhas de linho. O meu pai lia o jornal, calado. Eu movia-me devagar, quase sem ruído, como se tivesse medo de perturbar o equilíbrio de um aquário antigo.

Nunca fui de amizades. As pessoas cansavam-me. Faltava-me o talento da convivência — aquele jeito fácil de rir, de partilhar. Eu sentia-me melhor sozinha, inteira no silêncio.

Foi por isso que comecei a andar de mota.

Lembro-me do primeiro dia em que a comprei — uma usada, preta, pesada, com cheiro a óleo e promessa. Quando liguei o motor, senti uma vibração que me atravessou o corpo inteiro. A primeira aceleração foi um choque: o vento a bater-me na cara, o sol a ferir-me os olhos, a liberdade a rasgar tudo o que eu conhecia.

A estrada não pedia explicações.

Lá, eu era só um corpo em movimento.

O capacete abafava o mundo, e o vento — esse vento — tornava-se o meu confidente.

Falava-me numa língua que não exigia palavras.

Nos fins de semana, saía cedo. Percorria quilómetros sem destino. Parava junto ao mar, sentava-me no muro e olhava o horizonte. O sal secava-me os lábios, o cabelo colava-se à pele, e eu sentia — por breves instantes — que a vida podia ser suportável.

Nunca contei isto a ninguém. Era o meu segredo. O vento era o único que sabia quem eu era.

Naquele ruído, havia uma paz quase sagrada.

Sentia que o mundo inteiro cabia entre o rugido do motor e o som do mar.

Era o único momento em que o meu coração deixava de ser uma pedra e voltava a bater com alguma doçura.

Foi nessa altura que conheci o Martim.

No escritório, entre pastas e e-mails, ele parecia tão tranquilo que eu acreditei que o sossego dele podia curar a minha inquietação. Ele falava pouco, mas olhava-me com um cuidado que me desarmava. Fomos ficando juntos, sem planos, sem dramas.

Quando percebi, já os meus pais sabiam, já a minha mãe o chamava “meu genro”, já a vida tomava forma por mim.

Mudei-me com ele para casa dos meus pais — decisão que hoje me parece absurda, mas na altura foi apenas o caminho mais fácil. A minha mãe voltou a ser dona de tudo: da cozinha, da roupa, das horas.

Eu deixei-me ir.

Engravidei.

Não pensei muito. Foi o que se esperava. O que os outros chamavam “felicidade”.

Durante a gravidez, sonhava muitas vezes que conduzia sozinha pela serra, o motor a rugir, o vento a empurrar-me para longe. Acordava com culpa.

O ventre crescia, mas dentro de mim não crescia a ternura — apenas uma espécie de medo, uma sensação de estar a ser levada por uma corrente que não escolhi.

Quando o Gabriel nasceu, a chuva batia nas janelas do hospital — um som familiar, quase reconfortante.

Colocaram-mo nos braços, e eu tentei sentir o amor de que todos falavam.

Nada.

A minha mãe chorava de alegria, e eu olhava para o meu filho como quem observa um estranho que precisa de mim mais do que eu consigo dar.

Senti vergonha. Senti-me defeituosa.

Em casa, as noites foram longas. Ele chorava, eu chorava também.

A minha mãe dizia: “Dá-mo cá, tu não tens jeito.”

E eu acreditava.

Acreditava tanto que comecei a desaparecer.

O corpo estava lá, mas o resto de mim vivia noutro lugar, algures entre o barulho do motor e o vento que nunca mais senti.

O tempo foi passando, e com ele veio o afastamento. Gabriel ria com o pai, ria com a avó — comigo, apenas silêncio. Quando ele disse a primeira palavra — “vovó” — senti uma fisgada no peito.

Na mesma noite, sonhei com a mota. A mesma de sempre.

Senti o vento a bater-me na cara, o sol a queimar-me o pescoço, o som do motor a abafar tudo: o choro, as vozes, a casa.

Acordei com lágrimas.

Tive a certeza de que ele era mais feliz com outras pessoas. E essa certeza, embora cruel, trazia-me uma espécie de paz.

Quando no trabalho surgiu uma vaga para Madrid, não hesitei.

Foi quase instintivo — uma vontade que me atravessou como uma corrente elétrica. Não pensei nas consequências, nem nas pessoas, nem em mim. Era apenas um impulso: sair.

Fiz as entrevistas às escondidas, com o coração acelerado e uma sensação de culpa a subir-me pela garganta. Quando recebi o e-mail de aceitação, li-o três vezes seguidas. Depois, fechei o portátil e fiquei ali sentada, imóvel, durante minutos que pareceram horas.

O som da televisão vinha da sala, a minha mãe a rir-se de algo, o Gabriel a brincar, o Martim a folhear um jornal. Tudo igual, tudo intacto — e, ainda assim, eu já estava noutro lugar.

Nessa noite, contei-lhe.

Ele estava na cozinha, a beber um copo de vinho, cansado. Disse-lhe que ia.

Não fiz rodeios nem justificações — só isso: “Vou para Madrid.”

Ele pousou o copo devagar. Olhou-me durante um longo silêncio.

Foi um olhar cheio de coisas não ditas: cansaço, compreensão, talvez até alívio.

Não me perguntou por quê, nem tentou convencer-me.

Percebeu.

E, no fundo, eu soube que sempre soubera.

Talvez também ele soubesse que eu já tinha partido há muito tempo —

naquela noite em que o Gabriel chorava e eu fingi dormir,

naquela tarde em que me sentei na varanda a olhar o céu e desejei estar em qualquer outro lugar,

naquele instante em que deixei de ser “nós” e voltei a ser só “eu”.

Martim não disse nada. Limitou-se a acenar, a um ritmo lento, resignado.

E, nesse gesto pequeno, percebi que o amor também se pode despedir sem palavras.

Em Madrid, aluguei um quarto pequeno. Tinha uma janela que dava para a rua, e nas manhãs de sol eu deixava o vento entrar — o mesmo vento, sempre o mesmo, como se me tivesse seguido.

Trabalhava muito, jantava pouco, dormia o suficiente para não enlouquecer.

Às vezes, alugava uma mota por um dia. Andava pelas avenidas largas, o vento de Espanha a dizer-me coisas que só eu entendia.

Era a única altura em que sentia paz.

O vento era o meu consolo e o meu castigo: lembrava-me de tudo o que tinha deixado para trás, mas também me provava que eu ainda existia.

As fotografias do Gabriel chegavam pelo telemóvel. Natal, escola, praia. Ele sorria sempre. Eu respondia com corações, com “que lindo”, mas o coração estava distante.

Ele está bem, repetia para mim mesma. Está melhor assim.

Às vezes, dizia o nome dele em voz baixa, só para ouvir o som que fazia.

Gabriel.

O nome ecoava na casa como uma oração.

Agora tenho quarenta e oito anos.

Voltei há pouco. A casa dos meus pais parece mais pequena, o tempo encolheu-a. A minha mãe envelheceu, o meu pai fala pouco. O Martim continua gentil, mas cansado.

E o Gabriel… o meu filho… é um adolescente agora. Olhou-me como se tentasse lembrar de onde me conhecia.

Eu quis dizer mil coisas, mas o ar faltou.

Ficámos frente a frente, o silêncio a crescer entre nós — e, de repente, percebi:

o amor não desaparece.

Às vezes, transforma-se em vento.

Sopra dentro de nós, invisível, insistente, eterno.

E nesse instante, senti o vento entrar pela janela.

Suave, quente, familiar.

Como se me dissesse, uma vez mais, sem palavras:

“Ele está bem.

E tu, finalmente, também.”

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