Todas as semanas, publicamos um conto ficcional sobre o amor, a partir de um caso real
Eu era uma adolescente normal, filha única, e vivia numa família que, aos meus olhos, parecia tranquila. O riso do meu pai enchia a casa. Tinha um riso largo, generoso, que se ouvia antes de ele aparecer. A minha mãe trabalhava muito, mas encontrava sempre tempo para perguntar pelas notas, pelos amigos, pelas minhas inseguranças adolescentes. Era o tipo de mãe que sabia quando algo me doía, mesmo que eu dissesse o contrário.
Ao jantar, éramos um retrato quase perfeito: a televisão ligada num volume baixo, a comida a fumegar, o cheiro de manjericão a misturar-se com o do perfume dela, o som dos talheres a marcar o compasso da rotina. A minha mãe falava das reuniões do trabalho, o meu pai das notícias, e eu fingia impaciência, mas, no fundo, adorava aquele ritual. Acreditava, sinceramente, que o casamento deles era feliz. E quando digo acreditava, digo com a fé pura de quem nunca duvidou do amor dos adultos. Como estava enganada.
O dia em que tudo começou a mudar parecia, à primeira vista, um dia qualquer. Era primavera. O sol entrava pelas janelas do meu quarto, desenhando linhas quentes no chão. Eu estava no 12.º ano e íamos numa visita de estudo ao Oceanário. Acordei cedo, animada, vesti o uniforme, enfiei os auscultadores e apanhei a carrinha da escola. Lá dentro, éramos um coro de risos e conversas cruzadas — músicas a tocar nos telemóveis, selfies, planos para o almoço, pequenos dramas adolescentes que pareciam o centro do mundo.
Quando chegámos ao Parque das Nações, o ar cheirava a sal e a empadas quentes. Fizemos o percurso guiado, vimos os peixes deslizar nas águas escuras, tirámos fotografias a fingir que ríamos de coisas profundas. Tudo normal. Só mais uma manhã de escola.
A surpresa veio depois, à hora de almoço. O professor deu-nos uma hora livre e eu e os meus amigos descemos até à zona dos restaurantes junto ao rio. Foi então que, num movimento que ainda hoje não consigo explicar, olhei para o outro lado da avenida. E vi-a.
A minha mãe.
Ela saía de um hotel. O cabelo preso com elegância, um vestido claro que nunca lhe tinha visto, salto alto — parecia outra mulher. Ao lado dela, um homem alto, louro, com um ar estrangeiro e uma postura serena. Tinha aquele tipo de presença que preenche o espaço sem esforço. Vi-o inclinar-se ligeiramente, olharem em volta — como quem teme a verdade do mundo — e depois o beijo.
Foi rápido. Mas inconfundível. Um beijo que não deixava margem para dúvidas.
Ela abraçou-o, sussurrou algo que não ouvi, e entrou num táxi. Ele ficou a vê-la partir, as mãos nos bolsos, o olhar distante, e depois desapareceu pela esquina.
O meu corpo congelou. O mundo continuava à minha volta — o som do trânsito, o barulho dos risos, o cheiro a batatas fritas —, mas eu estava suspensa no ar, como se tivesse caído fora do tempo. Os meus colegas chamavam-me de longe: “Anda, estamos com fome!” Mas a voz não me saía da garganta.
Voltei para casa nessa noite como quem anda por dentro de um sonho. Tentei agir normalmente. Ela chegou mais tarde, com um saco de compras e o mesmo vestido que tinha usado de manhã. Estava bem-disposta, falava animada, e o cheiro do seu perfume encheu a sala — aquele perfume novo que eu ainda não conhecia. O meu pai cozinhava, sorridente, e a minha avó Lídia falava de memórias antigas, com a voz embargada de saudade. Vi-a beijar o meu pai na face, rir-se de algo banal. Tudo parecia igual. Tudo, menos eu.
Nessa noite, não dormi. Revi a cena na minha cabeça vezes sem conta. Convenci-me de que devia haver uma explicação lógica — uma coincidência, uma confusão. Talvez aquela mulher não fosse a minha mãe. Talvez eu tivesse visto mal. A minha mente recusava aceitar o que os meus olhos tinham testemunhado.
Mas os dias passaram, e a dúvida transformou-se em certeza. A minha mãe estava diferente. Mais leve. Mais vaidosa. Havia nela um brilho que não era o mesmo. Mudou o corte de cabelo, fez madeixas loiras, comprou roupas novas — vestidos mais justos, saltos mais altos. E um perfume novo, intenso, doce, que parecia anunciar a chegada de alguém.
Uma tarde, enquanto estudava na sala, ouvi o som do telemóvel dela a vibrar. “Farmácia”, dizia o contacto. Um nome banal. O toque repetiu-se nos dias seguintes, sempre a horas aleatórias. A palavra soava a disfarce.
Até que um dia, arrisquei.
“Mãe, posso usar o teu telefone? O meu está sem bateria e preciso de ver uma coisa da escola.”
Ela hesitou, o olhar firme. “Não gosto que mexas no meu telefone.”
“São só cinco minutos”, insisti.
Peguei no aparelho com as mãos suadas. Desbloqueei. As mensagens pareciam inocentes — conversas de trabalho, grupos de família, trocas de receitas. Até que vi o número da “Farmácia”. Abri.
O texto estava em inglês: “Vemo-nos hoje?”, “Só posso à hora de almoço”, “Tenho saudades tuas.”
O chão pareceu fugir-me dos pés. Fechei o telefone à pressa, devolvi-o, e subi para o quarto. Encostei a porta, sentei-me no chão e chorei em silêncio. Era uma dor sem nome — uma mistura de raiva, incredulidade e tristeza.
O meu pai, mais tarde, chamou-me para jantar. “Está tudo bem, filha?” perguntou, sorrindo, inocente. E eu, com a voz embargada, apenas disse: “Está, pai.”
Depois disso, tornei-me uma espécie de espia dentro da minha própria casa. Observava-a, estudava-lhe os gestos. Notei como disfarçava as ausências, como sorria ao telemóvel, como o brilho nos olhos aparecia sempre que falava de “reuniões de trabalho”. Notei como inventava almoços com amigas, como chegava tarde, como parecia feliz por razões que eu desconhecia.
Um dia, não aguentei mais. Fui atrás dela. Esperei num café em frente à empresa onde trabalhava. À hora de almoço, vi-a sair apressada, olhar o relógio e entrar num táxi. Segui-a noutro.
Parou perto do rio, à porta de um restaurante elegante. Da janela, vi-a sentar-se à mesa com o mesmo homem louro. Vi-os rirem, trocarem olhares, tocarem-se nas mãos. E, no final, o beijo.
Apertei os punhos até as unhas me marcarem a pele. Quis entrar e gritar, mas fiquei parada, imóvel, a sentir o coração bater como se quisesse escapar-me do corpo.
Voltei para casa sem saber o que fazer. Passei semanas, meses assim — entre o desejo de contar tudo e o medo de destruir a vida de todos. A minha mãe mentia, mas também era a mulher que me embalava, que me conhecia desde o primeiro choro. E o meu pai... o meu pai amava-a de um modo que parecia eterno.
Quando finalmente contei, foi num impulso. Estávamos todos a almoçar num domingo. Ela olhou para mim, primeiro surpresa, depois com uma expressão que nunca esquecerei — uma mistura de culpa e cansaço. Respirou fundo e, sem negar, disse apenas: “Sim.”
O resto foi silêncio. O meu pai levantou-se devagar, sem uma palavra, saiu de casa e não voltou naquela noite. A minha avó chorou. E eu, no meio de tudo, senti-me vazia.
Durante meses, vivi entre a culpa e a tristeza. Achei que tinha destruído o casamento dos meus pais. Mas, com o tempo, percebi que só tinha acendido uma luz no escuro — o que se partiu já estava rachado há muito. Eu apenas revelei o que já ninguém conseguia esconder.
A casa ficou diferente. O riso do meu pai desapareceu. O cheiro a manjericão foi substituído pelo silêncio. A minha mãe dormia num quarto, o meu pai noutro. As conversas tornaram-se educadas, mecânicas, pontuadas de pausas. Eu passei a evitar o olhar de ambos. A vida continuava, mas de uma forma fria, quase ensaiada.
Com o tempo, o divórcio chegou. Discreto, sem gritos, sem dramas. Uma assinatura num papel, uma divisão de bens, e uma história inteira que se desfez em pó.
A minha mãe acabou por casar com o Johann — o alemão por quem se apaixonou. Divide a vida entre Portugal e a Alemanha. Diz que está feliz. Às vezes envia mensagens, fotos de viagens, de neve, de festas em Munique. Sorriso sereno, olhar tranquilo.
O meu pai continua em Portugal. Nunca voltou a casar. Vive na mesma casa, rodeado de fotografias antigas, a tentar encontrar um sentido nas memórias. Ainda cozinha aos domingos, ainda guarda o lugar dela à mesa, como se o tempo pudesse devolver-lhe o que perdeu.
E eu? Eu aprendi a viver com as sombras. Aprendi que o amor dos adultos não é perfeito nem eterno. Que o silêncio também é uma forma de destruição. Que, às vezes, dizer a verdade é o mesmo que acender um fósforo dentro de uma casa cheia de gás.
Hoje, quando penso naquele dia à porta do hotel, percebo que foi ali que a minha infância terminou. Perdi mais do que a confiança na minha mãe — perdi a inocência, a crença ingénua de que o amor é imune à mentira. Aprendi que o amor pode mentir, pode doer, pode vestir-se de felicidade.
E o que mais me assusta é saber que, mesmo depois de tudo, ainda sinto falta da mãe que tinha antes daquele beijo.
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Este conteúdo contou com a participação de inteligência artificial na sua elaboração.
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