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A Liberdade é sempre pequena demais para quem a quer encher

A Liberdade faz-se com todos. Todos, todas, todes. A avenida enche-se - uma enchente como não há memória - para os 50 anos do 25 de Abril. Enche-se de rugas, de memórias. E de esperança naqueles que ainda não as têm. Há bandeiras, cartazes, gritos de paz, causas. Há futuro. Todos estão aqui por um motivo. Todos trazem uma história para contar. Houvesse linhas para contá-las todas. Este texto não foi visado pela Comissão de Censura

1."O amor pode ser uma revolução"

Comecemos pelo fim. É estranho, mas neste caso tem de ser. Maria Inês Antunes e Vasco Caeiro olham-se. Basta vê-los, de longe, para perceber como se querem, como estão felizes. Estão no topo de uma antiga cabine de telefone do Rossio. Subiram até lá para a rapariga acenar aos avós quando eles passassem. A poucos metros, outros se empoleiram no topo das chaimites.

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Maria Inês e Vasco são daquelas histórias que podem servir de postal a uma revolução. Ele nasceu na China, ela veio da Margem Sul, encontraram-se pela vida. “O amor pode ser uma revolução”, diz ela. “Se um casal quiser, o amor é todos os dias uma revolução”, completa ele.

Amor e uma revolução em Lisboa

Esta é a memória de um dia feliz. Daqueles que não precisam de uma máquina do tempo para serem vividos. Mas, se a tivesse, Maria Inês sabia bem para onde ia. “Se pudesse viajar no tempo, era para ver o 25 de Abril de 1974”. A boina é vermelha, de um vermelho vivo que só arranja comparação nos cravos que, solitários, espreitam de uma janela do segundo andar.

Cravos à janela

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2. "O nosso 25 de Abril ainda não se cumpriu"

Antes das três da tarde, o Metro vem apinhado em Lisboa. A partir de determinada estação, deixa de ser possível entrar. “Cabem mais cinco”, de uma assentada, que a gente aperta-se já. A porta começa a fechar mal, ameaça as partidas. E o povo, unido, lá arranja forma de chegar ao destino. Chegamos sempre aonde nos esperam, lá dizia Saramago. “Tem de apertar a porta”, grita-se para quem fica mesmo junto à saída. É essa a sua função.

Cada um percorre a Avenida da Liberdade como pode. Hélder Mestre, de 57 anos, fá-lo em cadeira de rodas. “É uma afirmação de liberdade”, diz. Como a liberdade que um acidente de viação ameaçou tirar-lhe quando lhe limitou a mobilidade.

Hélder Mestre com a mãe

“Isto é uma luta constante, o nosso 25 de Abril ainda não se cumpriu. Saía do país e havia outras pessoas com deficiência, aqui era uma ave rara. Felizmente, estamos agora a ocupar as ruas”.

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Hélder traz companhia, a mãe, de 91 anos. Antónia Almeida também está numa cadeira de rodas. “Se não fosse isto, também não podia vir”. Antes, vinha de andarilho. Agora, quando faltam as forças, a cadeira ajuda. Só falta o pai, com quem Hélder se lembra de “vir à Baixa para as manifestações”.

3. "Vai para o caralho, facho de merda"

Há cartazes para todos os gostos. Há cartazes em todos os feitios. O de Kevin Cruz, artista, é simplesmente mais direto no destinatário. Tem a forma de uma mão. A mão que o jovem quer dar, na rua, à pessoa que ama sem receios de serem atacados.

O cartaz “vem das últimas presidenciais” – quando André Ventura foi candidato -, mas é usado em todas as oportunidades possíveis para “combater o fascismo”. Até porque há muito trabalho a fazer nesse domínio. “Um grande percurso a fazer”, muito maior do que o desta tarde, pela Avenida da Liberdade abaixo.

Kevin está aqui também pela sua comunidade, a comunidade queer, pela “liberdade de ser quem sou, sem medo de estar na rua”.

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Kevin (ao centro) com os amigos

Neste dia, muito outros decidem colocar a extrema-direita como a protagonista dos seus cartazes. Num deles, veem-se os 230 lugares do Parlamento. E “50 razões para estarmos aqui”. Sinais de alerta tomam os assentos na bancada do Chega.

“Ainda sou do tempo em que não havia uma vara de porcos no Parlamento”, lê-se no cartaz de José Simões, vindo de Setúbal, a meio da avenida a ver a marcha passar. O Chega é um perigo para a democracia? “É uma ameaça, um perigo não”, responde.

Um dos muitos cartazes anti-Chega

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4. "É a primeira manifestação da Mel" (e de Cristina)

A touca cor-de-rosa de Mel também tem uma flor, mas é o cravo que os pais fazem questão de lhe mostrar. Afinal, este é o primeiro desfile de 25 de Abril da bebé. E logo numa data tão redonda, tão cheia de significado.

“Queremos que a liberdade se mantenha, com mais força ainda agora, porque as ameaças estão aí”, diz a mãe, Joana Baião, de 37 anos. O pai, Luís Lucas, de 39 anos, quer mostrar “como é importante estar na rua”. Ambos esperam que Mel, daqui a 50 anos, esteja também ela a assinalar outra data redonda de liberdade.

Mel e os pais na primeira manifestação da bebé

A poucos metros, há também quem se estreie nestas andanças. Cristina Santos, 61 anos, vem à marcha do 25 de Abril pela primeira vez. Há 50 anos, estava de cama, doente. “Vi tudo pela televisão”. O pai ainda saiu de manhã, de Massamá para a Baixa de Lisboa, para trabalhar. Voltou poucas horas depois, com um país em transformação. A imagem mais marcante, recorda, é a da “libertação dos presos políticos de Caxias”.

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5. "Fui preso político em Caxias. Sabe qual foi a minha sorte? Havia lá um PIDE que era da minha terra"

Um desses homens libertados de Caxias é João Louro, de 84 anos, que está, sem que Cristina Santos o saiba, a poucos metros dela. Dois anos em Caxias. “Prenderam-me”, conta, em segredo, sem abdicar do sorriso. Como se o que ele passou tivesse sido algo fácil.

Naquele dia, o professor saiu das aulas. Ia ter com a namorada. Não chegou ao destino. “Fui referenciado por ter participado num Primeiro de Maio”. Ficou “sem dormir uma data de noites e de dias. Iam buscar-me à noite para o interrogatório”.

“Sabe qual foi a minha sorte? Havia lá um PIDE que era da minha terra”. De Alter do Chão, concretiza.

João Louro foi preso político em Caxias (à direita)

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João Louro vem com a família. António Foulto, de 76 anos, e Maria da Luz Fortes, de 82. A mulher não faltou a nenhuma marcha do 25 de Abril nesta avenida lisboeta. “Havia muito entusiasmo, alegria e esperança”. A última, confessa, tem vindo a desvanecer-se. A gente em redor, completa o homem, “é a prova de que estamos assustados” com o que aí pode vir. “Preocupámo-nos com os pobres da carteira e devíamos ter-nos preocupado com os pobres de espírito”

6. "Na Guiné-Bissau também estávamos a lutar para libertar Portugal da ditadura"

Portugal já foi ultramarino. E, também à custa dessa ambição, de homens e homens que foram para uma guerra que não era deles, sem regresso, se desgastaram os pilares de um regime que já cheirava a mofo.

“O 25 de Abril teve as suas raízes em África. Estamos inteiramente ligados”, conta Tcherno Baldé, de 31 anos. Ele a mulher, Fabiana Sano, vieram para Portugal há mais de uma década para estudar. Não esqueceram as raízes. Vêm para “mostrar aos filhos” a expressão da liberdade. Num país onde, dizem, “continua a haver racismo”, mas se sentem “integrados”.

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Numa altura em que Portugal discute se devemos ou não pedir desculpa pelos atos do passado, estes jovens não têm dúvida: acrescentar outras perspetivas é “contar a história de uma forma justa”. Cita-se o nome de Amílcar Cabral para lembrar que, na Guiné-Bissau, “estávamos também a lutar para libertar Portugal da ditadura”. Porque, sem isso, ninguém seria verdadeiramente livre e independente.

Casal também quis aproveitar esta comemoração redonda para trazer os filhos ao desfile
7. "Uma revolução nunca está fechada"

Crianças ao colo. Crianças em carrinhos. Crianças às cavalitas. Mesmo que não entendam o verdadeiro significado deste desfile, elas fazem questão de se juntar à festa. “O que é o fascismo?”, pergunta um rapaz ao pai, depois de ouvir uma das expressões mais repetidas neste dia: “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”.

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Luís Almeida, de 47 anos, tem dois miúdos empoleirados nele. Há força para segurá-los. “Temos-lhes, nestes últimos tempos, contado muitas histórias sobre o 25 de Abril. Aquilo que eles nos dizem é que querem sentir o que as pessoas viveram naquela altura, há 50 anos”.

E não há nada para transmitir esses sentimentos do passado como a rua. O amigo Paulo Proença, de 44 anos, avisa que “uma revolução nunca está fechada”. “A ideia de revolução é que é mutável”. Novas necessidades implicam novas revoluções. Mas as bases, essas, são imutáveis.

A revolução também se faz da nova geração
8. "O que faz falta é avisar a malta, que eles andam aí"

Não há forma mais eficaz de se destacar na multidão do que um cravo gigante. E nem as artroses impediram Isabel Brás, antiga professora de artes, de continuar a tradição. Mas é a amiga Lurdes Soares, antiga enfermeira, quem é mais dada à conversa.

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Lembra que foi perseguida no trabalho, porque havia um porteiro que pertencia à Legião Portuguesa e denunciava tudo o que lhe levantasse suspeitas. O 25 de Abril de 1974 “foi o dia mais feliz da minha vida, depois de ser mãe”. E, nem repetindo a marcha a cada ano, perde a felicidade. Pelo contrário, recorda-a das “grandes experiências de ver a miséria” na terra natal no Alentejo. “Aquilo ficou para sempre. É algo a que ninguém quer voltar”.

Lurdes e o seu cravo gigante (à direita)

A história seguinte também implica cravos, porque Nazaré Pinela apostou nestas flores para completar o ‘look’. “Uso muitas flores, hoje é o dia dos cravos”. Está emocionada pela quantidade de gente que se juntou na Avenida da Liberdade. Tem 60 anos. Guarda frescas as memórias de quando a revolução tinha acabado de nascer. “O que gostei mesmo foi de andar de chaimite. Hoje, a felicidade é estarmos na rua”.

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E o que faz falta para completar Abril? “O que faz falta é avisar a malta, que eles andam aí”. Eles, os fascistas.

Nazaré vestiu-se a rigor
9. "Vi o sofrimento da minha mãe nos três anos em que o meu irmão esteve em Angola"

Na Avenida da Liberdade, em Lisboa, muitos procuram a melhor vista para ver a festa passar. E que festa bonita, pá. Sobem ao topo das paragens de autocarros. Sobem à estátua do Marquês de Pombal.

Ainda assim, há quem veja a animação de baixo. Falamos dos três cães de Mário Castro, de 61 anos, vindo de Massamá, um dos muitos companheiros de quatro patas que, mesmo com trela, celebraram a liberdade.

A companhia de Mário neste desfile

“O 25 de Abril também se fez para eles”, brinca. Mas o 25 de Abril também falta cumprir-se para eles: “falta tomar medidas efetivas para as penas por maus-tratos” ou um serviço nacional de saúde para animais. “Graças a deus tenho possibilidades. Mas há muitos reformados que têm os cães como única companhia e não conseguem”.

Quando Portugal descobriu a liberdade, Mário tinha 12 anos. “O meu irmão tinha voltado da guerra. Eu estava na calha. Vi o sofrimento da minha mãe nos três anos em que o meu irmão esteve em Angola”. A mãe voltou a sorrir.

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