Comecemos pelo fim. É estranho, mas neste caso tem de ser. Maria Inês Antunes e Vasco Caeiro olham-se. Basta vê-los, de longe, para perceber como se querem, como estão felizes. Estão no topo de uma antiga cabine de telefone do Rossio. Subiram até lá para a rapariga acenar aos avós quando eles passassem. A poucos metros, outros se empoleiram no topo das chaimites.
PUB
Maria Inês e Vasco são daquelas histórias que podem servir de postal a uma revolução. Ele nasceu na China, ela veio da Margem Sul, encontraram-se pela vida. “O amor pode ser uma revolução”, diz ela. “Se um casal quiser, o amor é todos os dias uma revolução”, completa ele.
Esta é a memória de um dia feliz. Daqueles que não precisam de uma máquina do tempo para serem vividos. Mas, se a tivesse, Maria Inês sabia bem para onde ia. “Se pudesse viajar no tempo, era para ver o 25 de Abril de 1974”. A boina é vermelha, de um vermelho vivo que só arranja comparação nos cravos que, solitários, espreitam de uma janela do segundo andar.
PUB
Antes das três da tarde, o Metro vem apinhado em Lisboa. A partir de determinada estação, deixa de ser possível entrar. “Cabem mais cinco”, de uma assentada, que a gente aperta-se já. A porta começa a fechar mal, ameaça as partidas. E o povo, unido, lá arranja forma de chegar ao destino. Chegamos sempre aonde nos esperam, lá dizia Saramago. “Tem de apertar a porta”, grita-se para quem fica mesmo junto à saída. É essa a sua função.
Cada um percorre a Avenida da Liberdade como pode. Hélder Mestre, de 57 anos, fá-lo em cadeira de rodas. “É uma afirmação de liberdade”, diz. Como a liberdade que um acidente de viação ameaçou tirar-lhe quando lhe limitou a mobilidade.
“Isto é uma luta constante, o nosso 25 de Abril ainda não se cumpriu. Saía do país e havia outras pessoas com deficiência, aqui era uma ave rara. Felizmente, estamos agora a ocupar as ruas”.
PUB
Hélder traz companhia, a mãe, de 91 anos. Antónia Almeida também está numa cadeira de rodas. “Se não fosse isto, também não podia vir”. Antes, vinha de andarilho. Agora, quando faltam as forças, a cadeira ajuda. Só falta o pai, com quem Hélder se lembra de “vir à Baixa para as manifestações”.
3. "Vai para o caralho, facho de merda"Há cartazes para todos os gostos. Há cartazes em todos os feitios. O de Kevin Cruz, artista, é simplesmente mais direto no destinatário. Tem a forma de uma mão. A mão que o jovem quer dar, na rua, à pessoa que ama sem receios de serem atacados.
O cartaz “vem das últimas presidenciais” – quando André Ventura foi candidato -, mas é usado em todas as oportunidades possíveis para “combater o fascismo”. Até porque há muito trabalho a fazer nesse domínio. “Um grande percurso a fazer”, muito maior do que o desta tarde, pela Avenida da Liberdade abaixo.
Kevin está aqui também pela sua comunidade, a comunidade queer, pela “liberdade de ser quem sou, sem medo de estar na rua”.
PUB
Neste dia, muito outros decidem colocar a extrema-direita como a protagonista dos seus cartazes. Num deles, veem-se os 230 lugares do Parlamento. E “50 razões para estarmos aqui”. Sinais de alerta tomam os assentos na bancada do Chega.
“Ainda sou do tempo em que não havia uma vara de porcos no Parlamento”, lê-se no cartaz de José Simões, vindo de Setúbal, a meio da avenida a ver a marcha passar. O Chega é um perigo para a democracia? “É uma ameaça, um perigo não”, responde.
PUB
A touca cor-de-rosa de Mel também tem uma flor, mas é o cravo que os pais fazem questão de lhe mostrar. Afinal, este é o primeiro desfile de 25 de Abril da bebé. E logo numa data tão redonda, tão cheia de significado.
“Queremos que a liberdade se mantenha, com mais força ainda agora, porque as ameaças estão aí”, diz a mãe, Joana Baião, de 37 anos. O pai, Luís Lucas, de 39 anos, quer mostrar “como é importante estar na rua”. Ambos esperam que Mel, daqui a 50 anos, esteja também ela a assinalar outra data redonda de liberdade.
A poucos metros, há também quem se estreie nestas andanças. Cristina Santos, 61 anos, vem à marcha do 25 de Abril pela primeira vez. Há 50 anos, estava de cama, doente. “Vi tudo pela televisão”. O pai ainda saiu de manhã, de Massamá para a Baixa de Lisboa, para trabalhar. Voltou poucas horas depois, com um país em transformação. A imagem mais marcante, recorda, é a da “libertação dos presos políticos de Caxias”.
PUB
Um desses homens libertados de Caxias é João Louro, de 84 anos, que está, sem que Cristina Santos o saiba, a poucos metros dela. Dois anos em Caxias. “Prenderam-me”, conta, em segredo, sem abdicar do sorriso. Como se o que ele passou tivesse sido algo fácil.
Naquele dia, o professor saiu das aulas. Ia ter com a namorada. Não chegou ao destino. “Fui referenciado por ter participado num Primeiro de Maio”. Ficou “sem dormir uma data de noites e de dias. Iam buscar-me à noite para o interrogatório”.
“Sabe qual foi a minha sorte? Havia lá um PIDE que era da minha terra”. De Alter do Chão, concretiza.
PUB
João Louro vem com a família. António Foulto, de 76 anos, e Maria da Luz Fortes, de 82. A mulher não faltou a nenhuma marcha do 25 de Abril nesta avenida lisboeta. “Havia muito entusiasmo, alegria e esperança”. A última, confessa, tem vindo a desvanecer-se. A gente em redor, completa o homem, “é a prova de que estamos assustados” com o que aí pode vir. “Preocupámo-nos com os pobres da carteira e devíamos ter-nos preocupado com os pobres de espírito”
6. "Na Guiné-Bissau também estávamos a lutar para libertar Portugal da ditadura"Portugal já foi ultramarino. E, também à custa dessa ambição, de homens e homens que foram para uma guerra que não era deles, sem regresso, se desgastaram os pilares de um regime que já cheirava a mofo.
“O 25 de Abril teve as suas raízes em África. Estamos inteiramente ligados”, conta Tcherno Baldé, de 31 anos. Ele a mulher, Fabiana Sano, vieram para Portugal há mais de uma década para estudar. Não esqueceram as raízes. Vêm para “mostrar aos filhos” a expressão da liberdade. Num país onde, dizem, “continua a haver racismo”, mas se sentem “integrados”.
PUB
Numa altura em que Portugal discute se devemos ou não pedir desculpa pelos atos do passado, estes jovens não têm dúvida: acrescentar outras perspetivas é “contar a história de uma forma justa”. Cita-se o nome de Amílcar Cabral para lembrar que, na Guiné-Bissau, “estávamos também a lutar para libertar Portugal da ditadura”. Porque, sem isso, ninguém seria verdadeiramente livre e independente.
7. "Uma revolução nunca está fechada"Crianças ao colo. Crianças em carrinhos. Crianças às cavalitas. Mesmo que não entendam o verdadeiro significado deste desfile, elas fazem questão de se juntar à festa. “O que é o fascismo?”, pergunta um rapaz ao pai, depois de ouvir uma das expressões mais repetidas neste dia: “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”.
PUB
Luís Almeida, de 47 anos, tem dois miúdos empoleirados nele. Há força para segurá-los. “Temos-lhes, nestes últimos tempos, contado muitas histórias sobre o 25 de Abril. Aquilo que eles nos dizem é que querem sentir o que as pessoas viveram naquela altura, há 50 anos”.
E não há nada para transmitir esses sentimentos do passado como a rua. O amigo Paulo Proença, de 44 anos, avisa que “uma revolução nunca está fechada”. “A ideia de revolução é que é mutável”. Novas necessidades implicam novas revoluções. Mas as bases, essas, são imutáveis.
8. "O que faz falta é avisar a malta, que eles andam aí"Não há forma mais eficaz de se destacar na multidão do que um cravo gigante. E nem as artroses impediram Isabel Brás, antiga professora de artes, de continuar a tradição. Mas é a amiga Lurdes Soares, antiga enfermeira, quem é mais dada à conversa.
PUB
Lembra que foi perseguida no trabalho, porque havia um porteiro que pertencia à Legião Portuguesa e denunciava tudo o que lhe levantasse suspeitas. O 25 de Abril de 1974 “foi o dia mais feliz da minha vida, depois de ser mãe”. E, nem repetindo a marcha a cada ano, perde a felicidade. Pelo contrário, recorda-a das “grandes experiências de ver a miséria” na terra natal no Alentejo. “Aquilo ficou para sempre. É algo a que ninguém quer voltar”.
A história seguinte também implica cravos, porque Nazaré Pinela apostou nestas flores para completar o ‘look’. “Uso muitas flores, hoje é o dia dos cravos”. Está emocionada pela quantidade de gente que se juntou na Avenida da Liberdade. Tem 60 anos. Guarda frescas as memórias de quando a revolução tinha acabado de nascer. “O que gostei mesmo foi de andar de chaimite. Hoje, a felicidade é estarmos na rua”.
PUB
E o que faz falta para completar Abril? “O que faz falta é avisar a malta, que eles andam aí”. Eles, os fascistas.
9. "Vi o sofrimento da minha mãe nos três anos em que o meu irmão esteve em Angola"Na Avenida da Liberdade, em Lisboa, muitos procuram a melhor vista para ver a festa passar. E que festa bonita, pá. Sobem ao topo das paragens de autocarros. Sobem à estátua do Marquês de Pombal.
Ainda assim, há quem veja a animação de baixo. Falamos dos três cães de Mário Castro, de 61 anos, vindo de Massamá, um dos muitos companheiros de quatro patas que, mesmo com trela, celebraram a liberdade.
“O 25 de Abril também se fez para eles”, brinca. Mas o 25 de Abril também falta cumprir-se para eles: “falta tomar medidas efetivas para as penas por maus-tratos” ou um serviço nacional de saúde para animais. “Graças a deus tenho possibilidades. Mas há muitos reformados que têm os cães como única companhia e não conseguem”.
Quando Portugal descobriu a liberdade, Mário tinha 12 anos. “O meu irmão tinha voltado da guerra. Eu estava na calha. Vi o sofrimento da minha mãe nos três anos em que o meu irmão esteve em Angola”. A mãe voltou a sorrir.
PUB