Quatro anos depois da declaração de pandemia por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS), há ainda feridas que estão por sarar. Dos múltiplos impactos que a infeção por SARS-CoV-2 teve e ainda tem - sobretudo nos casos de covid de longa duração -, é na doença oncológica que as atenções se voltam a centrar.
Depois de vários estudos e entidades de saúde um pouco por todo o mundo terem alertado para o impacto da redução e suspensão de rastreios, consultas e cirurgias oncológicas, há agora mais evidências de que a pandemia trouxe outro efeito colateral: o SARS-CoV-2 pode ser um agente oncogénico e responsável pelo aumento dos recentes diagnósticos de cancro.
E foi em Portugal que surgiu uma das primeiras investigações sobre o impacto do SARS-CoV-2 no aparecimento de cancro.
Logo em 2020, os investigadores Miguel Alpalhão, João Augusto Ferreira e Paulo Filipe, escreveram na revista Medical Hypotheses que “a homologia estrutural com o SARS-CoV-1 indica que o SARS-CoV-2 pode ser capaz de prejudicar diretamente (...) os principais guardiões das funções supressoras de tumor. Além disso, a COVID-19 apresenta uma resposta inflamatória preeminente com stress oxidativo, que atua como iniciador e promotor da carcinogénese”.
“Isto pode ser esta justificação que procurávamos para o aumento de doenças oncológica que se está a verificar em idades mais jovens”, diz-nos Filipe Froes, pneumologista e diretor da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Pulido Valente, em Lisboa.
O ex-coordenador do Gabinete de Crise para a Covid-19 da Ordem dos Médicos e um dos peritos da Direção-Geral da Saúde para a gestão da pandemia fala-nos num estudo polaco em concreto, que foi publicado no final do ano passado na revista Frontiers in Molecular Biosciences e que apresenta evidências claras para essa ligação.
“Esta pandemia que vivemos de 2020 a 2023 pode estar associada ao aumento de doenças neoplásicas”, continua o especialista, dizendo que essa associação pode estar a ser resultado de três fatores, “um indireto e dois diretos”, podendo as pessoas com menos de 50 anos - já elas à mercê de estilos de vida e fatores ambientais potenciadores de cancro - estar mais suscetíveis a esta associação, embora destaque que o estudo em causa não se foque em faixas etárias.
O fator indireto diz respeito ao “desvio acentuado de custos e implementação de medidas restritivas que atrasou rastreios, diagnósticos e tratamento, e que se traduziu num aumento do número de casos em estadios mais avançados”, cenário que, por exemplo, foi relatado nos Estados Unidos nos casos de cancro gastrointestinal e em Espanha nos casos de cancro colorretal.
Os fatores diretos, continua o médico, prendem-se com duas situações que se verificaram em clínica nos últimos três anos: pessoas com um cancro até então ‘silencioso’ e que se iria manifestar mais tarde, mas à boleia do vírus foi notório mais cedo e pessoas que ficaram com cancro depois da infeção, podendo juntar-se assim o SARS-CoV-2 à restrita lista de causas virais da doença oncológica, na qual se inclui, por exemplo papiloma vírus humano (HPV), os vírus da hepatites B e C e ainda o Vírus Epstein–Barr (herpes vírus humano 4).
Filipe Froes explica, então, que houve “a aceleração de casos iniciais de doença neoplásicas que se iriam manifestar mais tarde, mas que se manifestaram mais cedo, sendo que a covid-19 foi a grande aceleradora” - algumas dessas neoplasias eram iniciais, outras vieram a ser reincidências, como relata esta investigação - e que a comunidade médica e científica começa agora a perceber que “a própria infeção por SARS-CoV-2 pode ser um fator de indução de novos casos de doença oncológica”.
No estudo realizado por investigadores polacos é explicado que “o vírus modula significativamente o sistema imunológico e induz inflamação crónica de baixo grau”, o que, por si só, faz com que “a infeção por SARS-CoV-2 a longo prazo” possa “contribuir para o desenvolvimento de cancros” e de várias formas diferentes: a vigilância imunológica do cancro fica “prejudicada” pela infeção por SARS-CoV-2, levando àquilo que o estudo descreve como “escape imunológico”, mas não só, também o stress oxidativo causado pela infeção - que “afeta a instabilidade do genoma, aumentando o número de mutações, a desregulação do ciclo celular” - e potencial integração do genoma viral são outros fatores em jogo, assim como os “efeitos [do vírus] nas vias de transdução de sinal do hospedeiro”, que estimulam “a inflamação” e promovem a “angiogênese, invasão e metástase”.
Também um estudo levado a cabo no Irão levanta o véu sobre o impacto da “tempestade de citocinas” provocada pelo SARS-CoV-2 e que pode ser causadora de “cascatas inflamatórias (...), abrindo caminho para o surgimento de células estaminais cancerígenas em órgãos-alvo”. Publicado no final do ano passado na revista Biochimie, este estudo desenvolvido por investigadores do Irão salienta que “um dos efeitos mais preocupantes da infeção a longo prazo é o potencial de indução de neoplasias malignas, que será um grande problema de saúde nas próximas décadas”. Já em 2021, uma outra equipa de investigadores do Irão alertava para o facto de a “síndrome da COVID-19 longa” poder “facilitar a progressão e recorrência do cancro”.
“Do ponto de vista científico, isto é extremamente interessante”, adianta Filipe Froes, defendendo que é preciso “continuar a investigar, a perceber a importância destes novos microrganismos” na doença oncológica. “O que estamos a encontrar agora são cada vez mais artigos que mostram as sequelas do SARS-CoV-2, que até na forma mais ligeira apresenta persistência” seja de sintomas como de mazelas, sendo o cancro uma delas.
Um outro estudo, publicado no início do ano na revista Journal of Medical Virology, revela que “as responsabilidades genéticas para a infeção por SARS-CoV-2 tiveram associações causais sugestivas com o risco aumentado de cancro de estômago”, mas indica que “não houve associações causais entre a infeção por SARS-CoV-2 e outros cancros”. No entanto, em casos de doença grave Covid-19, o estudo já reconhece que “as responsabilidades genéticas” nestes casos “foram associadas ao risco aumentado de cinco tipos de cancro (cancro da mama HER2-positivo, cancro do esófago, cancro colorretal, cancro do estômago e cancro do cólon)”.