Ler a sina na palma da mão tem sido a sina de muitas velhas ciganas, ao longo de séculos. Dona Prazeres, 80 anos cheios de esperteza e sabedoria, lê as linhas da vida, do passado e do futuro, nos jardins frente ao Palácio de Belém, em Lisboa. O negócio vai mau, muito graças à concorrência de astrólogas e quiromantes com escritório montado, algumas com programas na TV. Ainda assim, são as mulheres ciganas, velhas e novas, que se mantêm as guardiãs da família e das tradições de um povo que veio do noroeste da Índia para a Europa, no século X, e se fixou também na Península Ibérica, há mais de 600 anos. Um povo que, ainda que perseguido, nunca se deixou integrar à força na comunidade maioritária portuguesa. Um povo resistente, teimoso, sobrevivente. Dona Prazeres, psicóloga por força do engenho, mantém a ladainha: "Reza-lhe aqui na sua sina..." E a cliente, ainda que pouco crente, vai abrindo os olhos e abanando a cabeça, como quem diz: "E não é que a cigana vai acertando..."
O velho mito do cigano nómada, filho do vento e das estrelas, já se começou a perder há muito tempo. A maioria dos ciganos portugueses vive hoje nos subúrbios das grandes cidades, sobretudo de Lisboa e Porto. São, quase todos, feirantes ou negociantes. Mas final, quantos são? Não há número exactos (porque nos sensos não se pergunta qual a etnia ou a cor da pele), mas calcula-se que vivam em Portugal entre 40 e 60 mil ciganos. Alguns conhecedores das deambulações ciganas falam em mais de 100 mil.
Pouco letrados, arredios das escolas, só há alguns anos começaram a aparecer ciganos, e sobretudo ciganas, nas universidades. Mas poucos, ainda muito poucos. Cátia Montes, 30 anos, é uma delas. Vive em São Brás de Alportel e é uma algarvia dos sete costados. Trabalha de dia num super-mercado e estuda à noite no Curso Superior de Educação Social da Universidade do Algarve, em Faro. Anda diariamente numa lufa-lufa e ainda consegue arranjar tempo para ser bombeira, com formação em saúde e primeiros-socorros, nos Voluntários de São Brás. É ainda solteira, o que para muita gente tradicionalista cigana é uma vergonha. Mas Cátia não liga. "Eu é que sei da minha vida..." O comandante dos Bombeiros Voluntários de São Brás, Vítor Martins, lança-lhe os maiores elogios. "Tem pulso firme e integrou-se muito bem no corpo de bombeiros!"
Cátia, orgulhosa cigana, mantém as ligações e o respeito à família. Por vezes, pega no pai, Francisco Montes, 76 anos, e leva-o a visitar a irmã, o cunhado e os sobrinhos a Faro. É uma festa! O pai Francisco é uma figura do arco-da-velha. Já foi bombeiro, pedreiro e trabalhador nos montados de cortiça. Agora doente (ficou sem uma perna), Francisco sempre apoiou os estudos da filha, ainda que não saiba ler nem uma letra (apenas assinar o nome). Nos seus tempos de criança, poucos ciganos iam à escola, e ele sempre fugiu à prisão que a escola representava. Do que não fugiu foi à tropa, ao contrário de quase todos os ciganos da sua geração. "Foi só para chatear um tipo da GNR..." Tinha Francisco já os seus 25 anos quando um militar da GNR deu em apostar que havia de apanhar o Xico cigano para o levar a dar o nome ao quartel. Francisco andou fugido durante 2 anos, em casa de familiares em Setúbal. Os amigos de São Brás iam avisando. "Olha que o gajo não desiste de te apanhar!" E um belo dia, Francisco tomou uma decisão. "Digo eu assim: Eh pá! Não me apanhas não senhor! Eu é que me vou entregar para fazer a tropa!" E assim se apresentou voluntariamente no quartel de Faro. E por conta da teimosia em chatear o homem da GNR, Francisco bateu com os costados, durante 3 anos, em Mueda, norte de Moçambique, a região mais violenta e perigosa da então colónia, durante a guerra de África.