Vitória, nome fictício, tem 46 anos e não consegue precisar o ano em que contraiu o VIH, mas admite que viveu em negação durante muito tempo.
Há cerca de dez anos, consumia drogas pesadas e tem consciência que esse comportamento de risco esteve na origem da doença. “A loucura era tal, não só por causa do consumo de droga como também tudo o resto. Perdi a noção dos horários, das refeições, dos filhos, da família. Naquela altura, parece que não estava muito bem neste planeta”.
A dor e o peso da realidade sugou-lhe a vontade de viver. Vitória soube quem a infetou e não tem dúvidas de que o fez de propósito.
Recorda que essa pessoa que a infetou "andou ainda uns anos a vangloriar-se de que não estava sozinha e que tinha conseguido contaminar mais alguém". Mas as mágoas ficaram no passado. Agora, com acompanhamento médico, garante que a saúde está estável e se sente feliz. “Faço tudo o que tiver ao meu alcance para não transmitir nada a ninguém".
Mas até chegar aqui, o processo foi moroso e doloroso. Vitória foi internada em estado crítico várias vezes com pneumonia, problemas respiratórios, desidratação, entre outras complicações consequências do vírus e da falta de vigilância. “Entreguei-me à doença convencida que ia morrer”, lamenta.
“Durante os primeiros dois, três anos recusei tudo. Não ia às consultas, não era seguida, não tomava medicação, fugia a sete pés de tudo o que me obrigasse a enfrentar a realidade. Andei perdida uns dois ou três anos”, admite, consciente de que, naquela altura, não sabia que consequências iam ter as suas ações e decisões.
Vitória não lia nada sobre a doença, nem queria saber o que a esperava. “Neguei totalmente e durante anos não fiz nada para melhorar, antes pelo contrário, achava que quanto mais depressa morresse, melhor. Achava que isto era uma sentença de morte”.
Hoje, com o passar do tempo, admite que também essas atitudes a prejudicaram a sua saúde, que podiam ser melhorados e acautelados desde o primeiro instante.
Enquanto pôde negou, escondeu, afastou a realidade. Mas a vontade e a necessidade de ser admitida numa comunidade para tratar o problema da toxicodependência, confirmou-lhe o VIH/Sida. “Fui praticamente obrigada”.
"Houve uns anos em que não quis saber, outros em que recusei que tivesse a doença. Não queria saber nem fazer as análises específicas, fiz de tudo para fingir que não era comigo".
Mas quando já não o podia negar, a doença foi também um ponto de viragem nas relações familiares de Vitória. Quando soube que tinha contraído o VIH já estava divorciada, mas tinha dois filhos menores.
Naquela altura, a doença não foi abordada de todo e hoje continua a ser um assunto evitado. “Isso ainda é tabu. Falar claramente com eles [os filhos], não falei. Disse-lhes que tinha um problema. Desde miúdos, sempre ouviram a mãe dizer que tinha um problema na barriga, que era a hepatite C, e que tinha que ter alguns cuidados, mas nunca avancei mais do que isso”.
Os anos passaram, agora os filhos de Vitória já são adultos, mas a mãe continua sem falar com eles sobre os seus problemas de saúde. “Nem sei bem porquê. Acho que é uma coisa que os magoa e a mim também, então ficamos assim”.
Foi na comunidade onde estava a tratar o problema da toxicodependência que ouviu falar da Associação Abraço.
O uso abusivo de substâncias ilegais e a doença originou problemas dentários e foi na Abraço que conseguiu ajuda para os tratar. Há cerca de meio ano, começou a fazer voluntariado na instituição e hoje, com a infeção por VIH/Sida controlada, tem um quotidiano normal. Cumpre horário laboral, vai às consultas médicas, frequenta grupos de apoio e vive perto da família, dos filhos e dos pais.
“Hoje em dia, já tenho uma vida mais normal. Eles [os filhos] já têm gosto em estar com a mãe, acho que durante algum tempo até tinham medo porque me viam sempre num estado muito vegetativo, era uma figura um bocadinho impressionante”, recorda.
Atualmente, Vitória tem um companheiro, seropositivo há 20 anos, e garante que o seu apoio tem sido crucial. “Tem sido uma grande ajuda em todos os aspetos. Se calhar é mais fácil o relacionamento por isso mesmo, estamos os dois mais informados”.
O drama do VIH/Sida não se restringiu à aceitação pessoal de Vitória. No seio familiar, só venceu o estigma do VIH/Sida há cerca de três anos.Os seus pais tiveram de ultrapassar o medo e o preconceito sobre uma doença que desconheciam.
“No princípio foi muito complicado. Eles tinham muito poucas informações ou nenhumas sobre esta doença. Achavam que a minha roupa tinha que ser lavada a 90º graus, que os meus talheres tinham que ser lavados com lixívia. Houve um impacto muito mau durante os primeiros anos”. Agora, garante, eles já compreendem que é possível conviver com a doença, ter uma vida normal e que a doença afinal não se apanha pelas loiças, lençóis, abraços ou caricias.
Até ter sido diagnosticada seropositiva, Vitória recorda que tinha boas amizades e até conhecia algumas "pessoas importantes". Quando a doença se começou a manifestar com maior incidência, a maioria afastou-se e poucas foram as amizades que resistiram.
“A dada altura [os amigos] também perceberam que me desviei. Até tinha bons amigos, mas assim que as aperceberam que punha a pata na poça e que associado a isso vinham algumas doenças, foram-se afastando. Perdi um pouco o rumo, mas também perdi amigos e familiares, embora hoje já tenha outros e tenha conseguido recuperar alguns”.
No que respeita ao preconceito e aceitação, Vitória considera que hoje em dia as coisas estão diferentes. As pessoas já estão mais informadas e já encaram o VIH/Sida de outra forma. “Começou-se a perceber que se pode viver com isto e ter uma vida normal. Também fala-se mais sobre isto nas escolas, há mais congressos, colóquios… há muito mais informação do que há 10 ou 20 anos atrás”.
Estas melhorias têm quebrado barreiras sociais, mas Vitória afirma que o estigma ainda está presente no seu dia-a-dia. “Quando vou às consultas, sinto na maneira de olhar, no comportamento das pessoas que não se sentam ao meu lado ou se afastam”.