"Devia ter escolhido uma música completamente inócua, que não chamasse a atenção. Militarmente não foi uma boa decisão". A canção de Zeca que foi senha da Revolução agora também tem um museu - TVI

"Devia ter escolhido uma música completamente inócua, que não chamasse a atenção. Militarmente não foi uma boa decisão". A canção de Zeca que foi senha da Revolução agora também tem um museu

O núcleo museológico que conta a história da canção de José Afonso será inaugurado no sábado

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"Grândola, Vila Morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena, dentro de ti, ó cidade". As palavras e a música de José Afonso tornaram famosa a vila alentejana e, agora, Grândola retribui criando um núcleo museológico totalmente dedicado a esta canção. "Este é um projeto que já andávamos a magicar há algum tempo", conta à CNN Portugal Carina Batista, vereadora da cultura de Grândola. A inauguração acontece no sábado, no momento em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril.

"O museu conta detalhadamente a história do poema que se transformou em canção e depois em senha da Revolução com materiais documentais e recurso às novas tecnologias, é um museu interativo e imersivo", explica a vereadora. Os visitantes podem recuar no tempo e sentar-se no escritório da Direção Geral da Segurança, pegar no telefone e ouvir o relatório redigido pelos agentes da PIDE que assistiram, no Coliseu de Lisboa, ao I Encontro da Canção Portuguesa, onde José Afonso cantou "Grândola, Vila Morena", ouvir os testemunhos de José Mário Branco e Francisco Fanhais sobre a gravação da canção em 1971 ou recriar, num estúdio de gravação, a sua própria versão de "Grândola, Vila Morena" e depois partilhá-la nas redes sociais.

O nascimento de uma canção

Para encontrarmos a origem da canção "Grândola Vila Morena" temos de recuar a 17 de maio de 1964, quando José Afonso atuou na vila alentejana a convite da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, conhecida como "Música Velha". Esta era uma coletividade com uma grande atividade e que sempre teve do ponto de vista democrático grande importância no concelho. Além da banda, tinha uma biblioteca muito importante, com alguns livros proibidos, e também tinha clubes de teatro. Por isso era frequentada por muitos jovens", recordou à CNN Portugal António Figueira Mendes, que hoje é presidente da Câmara de Grândola mas que, na altura, era um jovem de esquerda, envolvido no Partido Comunista.

A biblioteca da "Música Velha" é recriada neste museu. "Temos vários livros que pertenciam à biblioteca, muitos deles tinham sido proibidos, e também mobiliário da época. E também temos registos fotográficos desse concerto", explica Carina Batista. 

Cerca de 200 pessoas juntaram-se naquele domingo no Cine-Teatro Grandolense para ouvir Zeca cantar. Foi aqui que ele interpretou pela primeira vez "Cantar Alentejano", que evoca o assassinato de Catarina Eufémia, ocorrido dez anos antes, numa letra de António Vicente Campinas. Apesar dos receios, por causa da PIDE, não houve quaisquer problemas. Dias depois, José Afonso escreveu uma carta de agradecimento com um poema com três estrofes dedicado aos sócios da "Música Velha" - estas estrofes, que viriam a sofrer várias alterações, estão na génese da canção "Grândola, Vila Morena".

O tema viria a ser incluído no disco "Cantigas do Maio", editado no final de 1971. José Mário Branco, que era o produtor do disco, tinha reservado durante duas semanas os Strawberry Studios, localizados num castelo do século XVIII, em Hérouville, a 30 quilómetros de Paris. Estavam lá também os músicos Francisco Fanhais e Carlos Correia e alguns músicos franceses.

No momento da gravação, "o Zé Mário, que tinha estado no Alentejo com o Giacometti, disse logo que aquilo era uma moda alentejana e que devíamos fazê-lo só com vozes e como se fôssemos um grupo de trabalhadores a cantar pela rua ao final do dia do trabalho", recorda Francisco Fanhais à CNN Portugal. "Ainda experimentámos fazer os passos no estúdio mas não ficava bem, até que ele encontrou aquela gravilha no exterior e fomos tentar." Foram assim criados os passos icónicos da abertura da canção.

O nascimento de um hino

Zeca Afonso estreou a canção em Santiago de Compostela (capital da Galiza) em 10 de Maio de 1972, mas em Portugal só viria a cantá-la em 29 de março de 1974, no I Encontro da Canção Portuguesa que se realizou no Coliseu de Lisboa, a abarrotar. Apesar da presença da PIDE, o ambiente era de festa e de resistência. Ao longo da noite, passaram pelo palco músicos como Carlos Alberto Moniz e Maria do Amparo, Carlos Paredes, Manuel Freire, José Jorge Letria, Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Vitorino e o poeta José Carlos Ary dos Santos, entre outros. José Afonso cantou nesse espectáculo duas canções, "Grândola, Vila Morena" e "Milho Verde".

No final, já perto das duas manhã, subiram todos ao palco para uma última canção. "Então, vamos outra vez cantar o Grândola", disse Zeca Afonso, que teria preferido interpretar no fecho "Venham mais cinco" ou "O que faz falta", por terem refrões mais politizados. Mas, não sendo possível, optou por cantar "Grândola", uma das poucas canções que tinham escapado à censura, acompanhado por todos os cantores em palco e secundado a plenos pulmões por milhares de vozes em uníssono. 

António Figueira Mendes estava lá, com a mulher, e lembra a emoção de estar entre "cinco mil pessoas a cantar em conjunto". "Havia já uma apropriação da canção pelo povo", diz. "O fruto estava a ficar maduro, estava quase a cair. Tudo aconteceu porque era o momento de acontecer", conta à CNN Portugal o atual presidente da Câmara de Grândola.

Menos de um mês depois, a canção de José Afonso seria uma das senhas que pôs em marcha a Revolução do 25 de Abril. O comandante Carlos de Almada Contreiras, que tinha na altura 32 anos e já uma longa carreira na Marinha, foi o responsável por essa escolha: "Depois do que tinha acontecido a 16 de março [o falhado "levantamento das Caldas"] percebeu-se a importância de, numa futura operação, dar um sinal que confirmasse em cima da hora que as ordens de operação que tinham sido atribuídas às unidades dias antes eram para ser executadas", recorda à CNN Portugal.

Ficou então decidido que se deveria escolher uma música que iria passar no programa "Limite", da Rádio Renascença, que era apresentado por Leite Vasconcelos e conhecido por ter "alguma abertura".

Carlos Contreiras encontrou-se com Álvaro Guerra, jornalista do "República", debaixo do elevador de Santa Justa, na rua do Carmo, e disse-lhe que a canção escolhida era o 'Venham mais Cinco', do Zeca Afonso. "Ele foi à rádio, que ficava ali perto, no Chiado, e eu fiquei à espera. Quando volta, diz-me que o 'Venham mais Cinco' não podia ser porque estava proibido e foi aí que escolhi 'Grândola'", lembra o comandante. "Para nós tinha algum significado que fosse uma música do Zeca Afonso. E como sou alentejano lembrei-me de 'Grândola'. Mas, pensando agora, devia ter escolhido uma música completamente inócua, que não chamasse a atenção. Militarmente não foi uma boa decisão. Depois, correu tudo bem e ninguém se lembrou, mas devia ter levado um puxão de orelhas."

A música transmitida na Rádio Renascença quando passavam 20 minutos da meia-noite foi o sinal para o arranque simultâneo das operações planeadas pelo MFA.

"Na parte final do museu, olhamos para a forma como o povo e a cultura popular se apropriaram da canção, que ainda hoje é cantada em manifestações e está muito associada à luta pela liberdade e pelos direitos das pessoas", explica Carina Batista. 

O museu tem ainda uma obra de arte original: um grande mural, da autoria de Mariana Santos, a partir de uma fotografia de Patrick Ulmann, que capta José Mário Branco, José Afonso e Francisco Fanhais no momento em que ensaiam os passos de Grândola, Vila Morena.

O Núcleo Museológico Grândola, Vila Morena está instalado no 1.º andar do edifício dos antigos Paços do Concelho, na praça D. Jorge, em Grândola. A inauguração será às 15:00 do dia 20 de abril e contará com um momento musical pela Banda Filarmónica da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense. 

Na noite de 24 de Abril, a festa em Grândola inclui concertos de Agir e de Paulo de Carvalho, que certamente irá interpretar "E depois do Adeus", o tema que foi a primeira senha do 25 de Abril - passou às 22:55 de dia 24 na rádio Emissores Associados de Lisboa e era um sinal para as tropas se prepararem para a ação.

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