Marcelo pediu desculpas pela colonização. Portugal está a "assumir" a sua "história imperial" e "violências associadas" ou o Presidente deixou-se "levar na onda"? - TVI

Marcelo pediu desculpas pela colonização. Portugal está a "assumir" a sua "história imperial" e "violências associadas" ou o Presidente deixou-se "levar na onda"?

Marcelo Rebelo de Sousa (Tiago Petinga/Lusa)

Dois luso-africanos, dois antigos deputados, duas posições que não podiam ser mais opostas. A historiadora e antiga parlamentar do Livre Joacine Katar Moreira e o advogado e ex-deputado do CDS Hélder Amaral contam à CNN Portugal como acolheram o discurso do Presidente da República no 25 de Abril

 
Nunca um representante do Estado português se tinha posicionado desta forma: o Presidente da República defendeu que Portugal deve um pedido de desculpas pelo seu passado colonial e deve assumir plenamente a responsabilidade pela exploração e pela escravatura neste período. A declaração rara de Marcelo Rebelo de Sousa sobre um assunto fraturante e profundamente divisivo na sociedade portuguesa foi proferida no Parlamento, em pleno discurso do 25 de Abril: "Não é apenas pedir desculpa - devida, sem dúvida - por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é às vezes o que há de mais fácil, pede-se desculpa, vira-se as costas, e está cumprida a função. Não, é o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado", sublinhou.
 
Mas se as palavras são inéditas, o simbolismo é também evidente: a intervenção, no dia em que o país assinalou 49 anos desde a Revolução dos Cravos que pôs fim ao Estado Novo, foi feita perante Lula da Silva, presidente do Brasil, ou seja, perante o chefe de Estado de um território que foi colonizado e explorado pelos portugueses em séculos passados. Marcelo parece ter, assim, aberto as portas a um pedido formal de desculpas que outros países europeus, como a França, o Reino Unido e, mais recentemente, os Países Baixos, já apresentaram. Estima-se que entre os séculos XV e XIX seis milhões de africanos tenham sido sequestrados e transportados à força em navios portugueses para serem vendidos no continente africano.

Até agora, algum tipo de desculpas sobre o passado colonial ouviu-se apenas do primeiro-ministro, António Costa, e em relação a um acontecimento muito específico: o massacre de Wiriamu, que aconteceu em dezembro de 1972, em Moçambique. Esse massacre, revelado pela imprensa britânica em 1973, foi durante muitos anos ignorado em Portugal. As declarações de António Costa surgiram em setembro, numa visita a Maputo, durante a qual o socialista classificou o massacre como um “ato indesculpável que desonra” a História de Portugal. "Neste ano de 2022, quase decorridos 50 anos sobre esse terrível dia de 16 de dezembro de 1972, não posso deixar aqui de evocar e de me curvar perante a memória das vítimas do massacre de Wiriyamu, ato indesculpável que desonra a nossa história", afirmou.

No caso de Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente tinha afirmado, em dezembro, também a propósito dos 50 anos do massacre de Wiriamu, que é tempo de assumir "em plenitude o que foi a inaceitável e terrível obra de alguns", mas que responsabilizou Portugal como um todo. O reconhecimento foi divulgado numa nota publicada no site da Presidência com o título "É tempo de assumirmos Wiriyamu". Anos antes, em 2018, durante uma visita a São Tomé, o chefe de Estado já se tinha referido ao massacre de Batepá, ocorrido há 70 anos: “Portugal assume a sua História naquilo que tem de bom e de mau, e assume nomeadamente, neste instante e neste memorial, aquilo que foi o sacrifício da vida e o desrespeito da dignidade de pessoas e comunidades”, vincou.

Com efeito, as palavras de Marcelo nunca tinham sido tão enfáticas como neste 25 de Abril: "Pedir desculpa - devida, sem dúvida - por aquilo que fizemos".

"Nunca é tarde para pedir perdão"

Joacine Katar Moreira, historiadora luso-guineense que foi deputada pelo partido Livre, afirma à CNN Portugal que "nunca é tarde para pedir perdão, mesmo que seja tarde demais para se ser perdoado". A ativista, que enquanto parlamentar sempre procurou inscrever este tema na agenda política, considera que "o Presidente faz bem em lembrar o país da responsabilidade histórica de Portugal".

Penso que o Presidente faz bem em lembrar o país da responsabilidade histórica de Portugal na escravatura e no tráfico de pessoas escravizadas, na desumanização dos povos subjugados e na importância de se desculparem, não apenas perante a história diria eu, mas também perante as pessoas descendentes destes povos que se tornaram alvo de racismo e violências várias que têm como modelo basilar as concepções criadas a partir do período colonial. Mas a fazê-lo, deve dizê-lo com todas as letras. Sem misturas suavizantes e sem laivos nacionalistas", afirma Katar Moreira.

 

A antiga deputada espera que estas declarações representem uma "tomada progressiva de consciência da importância de Portugal aceitar e assumir a sua história imperial e as violências associadas". Contudo, afirma que "seria importante" que o chefe de Estado "não desse uma no cravo e outra ferradura, quando no mesmo discurso  fala de 'desígnio nacional' e de Portugal ter sido na época colonial uma 'plataforma entre oceanos, culturas e povos', omitindo novamente as suas implicações e impactos nos países e nos povos colonizados".

Joacine Katar Moreira sublinha que "o Presidente tem um discurso confuso e difuso no que toca ao período colonial português e à descolonização" e que desde a sua eleição "tem feito declarações absolutamente saudosistas e lusotropicalistas, que reforçam uma visão do império colonial, que contrasta com parte das suas declarações no 25 de Abril".

Marcelo deixou-se "levar na onda"

Já o antigo deputado do CDS Hélder Amaral admite à CNN Portugal que foi surpreendido com "essa parte do discurso". O centrista considera que o Presidente da República "cedeu" ao "mediatismo" e "portou-se como o mais novo da sala". Luso-africano nascido em Angola, Amaral acredita que pedir desculpas pelo passado colonial "não traz nenhuma solução ou contributo positivo ao racismo estrutural que existe em Portugal".

Confesso que me surpreendeu essa parte do discurso, acho que é uma cedência do professor Marcelo Rebelo de Sousa ao sinal dos tempos ou à espuma dos dias. Eu espero sempre dos nossos senadores, dos nosso mais velhos, para usar uma expressão africana, que sejam isso mesmo, sensatos, firmes, que não cedam à tentação do mediatismo, que sejam mais ponderados. E às vezes o professor Marcelo Rebelo de Sousa porta-se não como o mais velho, mas como o mais novo. E deixa-se levar na onda", destaca à CNN Portugal.

O advogado sublinha que "a História dos países foi o que foi", "tem coisas boas e coisas más", mas que pedir desculpas "não é necessário, nem útil". "Nem acho que a questão existe, eu não sei se alguma das ex-colónias já fez algum pedido de indemnização, mas julgo que não. Não sei alguma das ex-colónias já levantou o problema, também julgo que não", acrescenta. Amaral continua: "E depois isto para onde, na primeira dinastia? Onde é que se para? Começámos todos a pedir desculpas pelos erros da História? Onde é que começa e onde é que acaba? Ou é apenas uma resposta às questões do revisionismo atual e de algumas franjas da sociedade que resolvem levantar questões não sendo essenciais?".

Por outro lado, o antigo deputado questiona ainda "que sentido faz" pedir desculpas pelo passado colonial "quando depois no concreto continuamos a discriminar gente que vem de Angola, de Moçambique ou de São Tomé". "Se calhar bom era pedir desculpa pelo racismo estrutural e não pelo que aconteceu no século passado", completa.

"Sim, estarei marcado, tenho marcado na pele e estarei marcado para toda a minha vida, pela guerra colonial e a descolonização. Mas essas são as circunstâncias de cada um, É preciso conhecer a História, percebê-la e seguir em frente. Como digo, talvez corrigir, talvez mudar de atitude, talvez olhar para as ex-colónias de forma diferente", sublinha.

Devolver ou não obras às ex-colónias e os manuais "pejados de falácias sobre o colonialismo"

A reflexão e a discussão sobre o passado colonial surgem, quase sempre, associadas a um debate sobre a eventual devolução de obras de arte a ex-colónias, passo que vários países também já deram.

França, por exemplo, já procedeu à restituição de várias peças, após a elaboração de um relatório pedido pelo próprio presidente, Emmanuel Macron. Esse documento, o relatório 'Savoy-Sarr', propôs a devolução de mais de 90 mil obras, com a maioria dos objetos identificados a integrarem as coleções do Museu Quai Branly-Jacques Chirac, em Paris. Com base nesse inventário, Macron ordenou a devolução de 26 peças, incluindo um trono real, ao Benim, uma antiga colónia francesa. As obras estavam no Museu Quai Branly-Jacques Chirac e tinham sido retiradas do palácio real do antigo Reino do Daomé (atual Benim), no final do século XIX. No ano passado, o presidente do Benim, Patrice Talon, inaugurou uma exposição com essas peças históricas devolvidas.

Exemplo idêntico aconteceu na Alemanha. Depois de um período de longas negociações, Berlim devolveu 21 artefactos preciosos à Nigéria. Essas obras, dos séculos XVI e XVIII, consideradas exemplares valiosos da arte africana, tinham sido saqueadas durante uma expedição britânica na região, em 1897, e acabaram vendidas a museus de Berlim, Hamburgo, Estugarda e Colónia. Na cerimónia que assinalou a restituição, em dezembro do ano passado, em Abuja, a ministra alemã dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, falou em "reparação histórica". "Estamos aqui para corrigir um erro", declarou.

Também a Bélgica devolveu, em junho do ano passado, uma máscara tradicional do povo Suku à República Democrática do Congo. A peça histórica estava no Museu Real da África Central, na cidade belga de Tervuren.

Em Portugal, numa entrevista ao jornal Expresso, o ministro da Cultura garantiu que será realizado um levantamento fino de obras de arte que se encontram nos museus portugueses e que podem ser devolvidas às ex-colónias. Uma lista que irá envolver académicos e diretores de museus.
 
Sobre este assunto, Hélder Amaral defende que "se qualquer Estado, seja ele o Estado angolano, o Estado timorense ou o são-tomense, quer reaver para a sua História algo que esteja em Portugal e seja fundamental" isso é algo que o Governo ou o Presidente podem fazer através de "acordos bilaterais" e que "deve ser tratado sem algum drama".
 
O antigo parlamentar defende até que "os países deviam fazer trocas, sim, para que houvesse um bocado de cada país em cada país". "No Museu de Luanda estão lá uma série de estátuas de "governadores portugueses de Angola, estão lá, faz parte da visita. (...) As histórias dos países entrecruzam-se. Se de repente devolvem as peças de repente quando chego a Luanda eu vejo o quê? Nada?", questiona.
 
Por sua vez, Joacine Katar Moreira defende que "os responsáveis políticos podem e devem trabalhar para a justiça histórica e há um longo caminho a percorrer nesse sentido". E além da restituição de obras de arte a ex-colónias, há outros planos em que isto pode acontecer, vinca: "na revisão dos manuais escolares, alguns pejados de falácias históricas sobre o colonialismo" e "também pela mudança de legislação", acrescentando que enquanto parlamentar apresentou "duas propostas de lei bem fundamentadas, que foram engavetadas, e que podem ser aproveitadas pelos partidos para garantir que a população racializada seja protegida pela lei".
 
A sociedade não é uma massa homogénea e os meios de comunicação são fazedores de opinião importantes e com bastante força. As pessoas defendem aquilo que conhecem e por isso devem conhecer a verdade sobre o passado colonial, que contrasta com o mito da heroicidade e o lusotropicalismo, bem disseminados pelo Estado Novo. Muitas pessoas estão conscientes da importância da descolonização das mentes e das instituições e querem que isso se concretize", remata Katar Moreira.
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