“Do ponto de vista físico é um resultado bombástico, do ponto de vista da engenharia está apenas a começar.” É desta forma que Luís Guimarãis, doutorado em Fusão Nuclear, descreve à CNN Portugal um feito inédito que deverá ser anunciado pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos esta terça-feira como "um grande avanço científico".
De acordo com a CNN, o Laboratório Nacional Lawrence Livermore, na Califórnia, conseguiu, pela primeira vez, produzir uma reação de fusão nuclear com ganho de energia. Na prática, isso significa que esta é a primeira vez que um processo conseguiu gerar mais energia do que a colocada, o que, a longo prazo, poderá significar um passo de gigante rumo à diminuição do consumo dos combustíveis fósseis como o petróleo ou o gás natural. No limite, poderemos estar a falar de uma fonte de energia ilimitada, e que surge de um processo que imita a energia gerada pelo sol (que se tenta replicar desde a década de 1950), que é conhecido por fusão por confinamento inercial. Além de não produzir emissões de gases com efeito de estufa, esta tecnologia também é muito mais prática quando comparada com a fissão nuclear (utilizada nas centrais nucleares como Zaporizhzhia), uma vez que não produz resíduos radioativos de longa duração.
Trata-se de um feito inesperado, até porque esta era uma investigação que já decorria há vários anos, e com resultados pouco promissores. É por isso que França, que também estudava o processo, decidiu desinvestir, deixando os Estados Unidos praticamente sozinhos na corrida, que agora tem um primeiro passo num caminho que deverá ser ainda muito longo.
É que, segundo Luís Guimarãis, esta demonstração só tem validade do ponto de vista da física. No fundo, conseguiu-se provar que é possível fazer este processo, mas falta confirmar que o mesmo poderá ser desenvolvido com viabilidade económica e financeira.
“Esta é a primeira vez que uma experiência demonstra um ganho de energia através de processos de fusão maior que a quantidade de energia que foi colocada para gerar o processo”, refere o físico.
Neste caso, lembra o especialista, foram gerados 120% de energia a mais que a colocada para o processo, uma percentagem consideravelmente baixa, e que terá de subir para 10 vezes o investimento de energia, ou seja, 1000% para se poder começar a falar em viabildade económica. É algo possível, mas que envolve uma condição: apoio político.
“No final do dia estas coisas só se fazem com forte apoio político. Se tiver boa perceção, mais cedo ou mais tarde chegamos lá”, acrescenta Luís Guimarãis, que não tem dúvidas: os Estados Unidos acabam de dar um passo em frente caso venha a haver viabilidade nesta tecnologia, uma vez que são os únicos a conseguir tais resultados.
Quanto tempo até lá chegar?
É a pergunta de um milhão de euros, à qual Luís Guimarãis também não consegue responder. Como diz o físico, a área do nuclear é feita de avanços disruptivos, encontrando resultados quando, como é o caso, já não se espera.
“Já ninguém esperava um resultado dali. Os americanos estavam a perder financiamento para a área de fusão, pelo que é uma agradável surpresa para a área”, explica, dizendo que agora se avança para um processo em que o investimento deve acontecer ao nível do capital humano, mas também do capital propriamente dito, o que significa “milhares de milhões de euros até chegar a um protótipo comercial”.
Dinheiro esse que servirá para mostrar se os resultados alcançados ao nível da física são passíveis de vir a ser utilizados de forma comercial. Produzir um gerador de energia através da fusão nuclear que seja viável financeiramente é o próximo desafio: “É uma boa notícia do ponto de vista físico porque ficou demonstrado que é exequível, mas para fazer um reator comercial a partir disto… o desafio da engenharia começa agora, e isso ainda está muito longe”, afirma Luís Guimarãis. Nos Estados Unidos haverá, ao que tudo indica, esse dinheiro: o Ato de Redução da Inflação tem 370 mil milhões de dólares (sensivelmente o mesmo valor em euros) prontos para subsidiar investigações que encontrem formas de produzir energia sem produção de dióxido de carbono.
O vídeo abaixo, que foi partilhado pelo Laboratório Nacional Lawrence Livermore, mostra o processo de confinamento inercial.
Olhando para um dos objetivos da comunidade internacional, a neutralidade carbónica até 2050, Luís Guimarãis duvida que esta tecnologia vá ajudar a cumprir esse desígnio, apontando, de um ponto de vista que diz ser conservador, pelo menos 10 a 20 anos até que se façam os estudos de viabilidade. Só a partir daí, e confirmando-se que a tecnologia pode ser utilizada comercialmente, se avançará para a construção destes sistemas.
“Para esta tecnologia ser comercializada tem de ser viável economicamente, e isso ainda está muito longe. Tem de ser feito um estudo de ciclo de vida para verificar a viabilidade dos materiais e dos processos utilizados. Pode haver uma surpresa, mas a previsão mais conservadora seria uma a duas décadas até ter um protótipo comercial. Só aí se saberia se era viável para comercializar”, complementa.
Depois disso, continua o especialista, vamos continuar a precisar de energia produzida a baixos níveis de carbono, pelo que, mesmo que chegue para lá do ponto em que seria possível atingir a neutralidade carbónica, esta tecnologia “será sempre bem-vinda”. Ainda assim, este poderá ser um cenário de menor aceitação na União Europeia, cuja maioria dos países tem resistido a abrir o debate sobre a energia nuclear, mesmo perante a crise energética instalada por causa da guerra na Ucrânia.
Em Portugal, por exemplo, a discussão sobre uma possível utilização de energia nuclear levou a um momento mais quente entre António Costa e Rui Tavares, quando o primeiro-ministro e o dirigente do Livre participaram no debate com todos os líderes partidários para as eleições legislativas que se realizaram no início do ano.
"No programa do Livre encara-se com grande abertura a possibilidade de estudar o recurso à energia nuclear como uma solução para a transição energética", afirmou o secretário-geral do PS, recusando enveredar por essa via, sendo que Rui Tavares defendia um estudo aprimorado da tecnologia de fusão nuclear, a mesma que agora demonstra resultados.
A postura de António Costa está longe de ser única. Mesmo que a energia nuclear tenha sido incluída na taxonomia europeia como energia sustentável, continua a ser uma fonte que gera desconfiança no espaço dos 27. E até nisso esta nova descoberta pode ajudar: “A fusão, do ponto de vista público, é muito mais aceitável que a fissão”, refere Luís Guimarãis, que lembra que as centrais nucleares existentes se baseiam na tecnologia de fissão.
Longe ou perto, quando (e se) a energia a partir da fusão nuclear chegar, esse poderá ser um avanço decisivo rumo a um planeta menos dependente dos combustíveis fósseis.