No jardim da casa cor de pêssego, ouvem-se pássaros. Os três cães correm ao portão quando ouvem a campainha. Será assim no dia em que, no lar de Carla Alexandra Lopes, chegar uma refugiada ucraniana com o seu filho de 12 anos. O marido, Pedro Almeida, antecipa esse momento numa frase: “É como ter o primeiro filho. Nunca ninguém está preparado”.
O casal inscreveu-se numa plataforma (como esta criada por consultores imobiliários, esta da associação Ukrainian Refugees UAPT ou esta do movimento Solidary Bed) que cruza famílias dispostas a ajudar e os pedidos de refugiados ucranianos que vão chegando. O quarto já estava pronto ainda antes de receberem a confirmação de que tinham sido escolhidos.
“Não tenho receios, porque as pessoas vêm bastante fragilizadas. Ponho-me no lugar delas e acho que elas é que deverão ter algum receio. Tento ver a coisa ao contrário”, conta a tradutora. Os filhos, de seis e oito anos, também já sabem que há guerras espalhadas pelo mundo. Esta, na Ucrânia, é a mais próxima. “É importante que percebam que há outras vidas completamente diferentes das nossas”, diz.
Mais do que recebê-los em casa, Carla e Pedro querem que a família acolhida sinta que tem a ajuda deles para o que for necessário, das refeições aos passeios, respeitando sempre os limites de quem chega de uma guerra e precisa de tempo e espaço para sarar. Apesar desta moradia em Porto Salvo ter alarme, por aqui sabe-se que é outro tipo de segurança, mais elementar, que se procura.
A vontade de acolher alguém não é nova. Carla e Pedro já estavam inscritos numa plataforma para receber estudantes estrangeiros, mas a pandemia adiou o plano. Mas, venha quem vier, eles contam com três fortes aliados para derrubar as barreiras da língua. Bea, Towelie e Quim não poupam nas lambidelas, no mimo. “Os animais são muito terapêuticos nestes casos. Espero que eles possam, mais do que nós, ajudar nesse sentido terapêutico e de estarem em paz”, afirma Carla.
O quarto-escritório perto do mar
Vasco Girão Severo e Constança Moctezuma mudaram-se para esta casa em Oeiras há sete meses, no dia em que nasceu o mais novo dos três filhos. E entre a voltas que a vida lhes tem dado, não se importam de acrescentar mais uma: a de acolher uma família ucraniana refugiada.
Não é a primeira vez que ajudam alguém nesta situação. Quando viviam em Alcântara, Lisboa, chegaram a ajudar uma família iraquiana refugiada com mobílias. Na altura, a casa era pequena e não havia espaço para dar o passo que agora estão a preparar. O escritório onde têm trabalhado em casa vai ser desmontado para dar lugar a um quarto. “Quando vimos esta situação, vimos que a casa tem condições para mais uma família. Uma família pequena, com miúdos, uma mãe com filhos. Também temos filhos. Acho que encaixa na nossa dinâmica, na nossa casa”, conta o economista.
Nem Vasco nem Constança sabem falar ucraniano. Ele, admite, até conhece o alfabeto. Mas acreditam que existirão soluções que permitam o equilíbrio da convivência, se a língua inglesa não for uma opção para quem lhes chegar a casa. Para passar o tempo há livros e obras de arte na sala. O frio não convida, por agora, a um mergulho na pequena piscina da família. Mas, aqui perto, o som do mar pode ajudar.
“Acho que o mar pode transmitir essa sensação de tranquilidade às pessoas. A partir daí, vão encontrar aquilo que querem fazer. Por exemplo, estabilizar e encontrar um emprego, a partir do momento em que os objetivos de paz e estabilidade estiverem atingidos”, conta este pai, que tem estado à espera que lhe liguem para confirmar que existem pedidos de abrigo que encaixem nas rotinas da família.
E, de algum modo, é como se a história se repetisse: nos anos 1950, os tios acolheram refugiados húngaros. As memórias desses tempos e as amizades feitas ainda hoje são motivo de conversa. O futuro logo o dirá quanto a esta nova vaga que se desenha na Europa. “Os pais, mesmo quando não querem educar, estão a educar”.
Devolver o que se recebeu
Quando a pandemia forçou os aviões a ficar em terra, João Alexandre estava numa viagem de trabalho no Brasil. O que eram 15 dias transformaram-se em três meses de confinamento num país estrangeiro, sem conseguir regressar a casa, em Alcabideche. A mesma casa onde agora está disposto a receber uma família ucraniana obrigada a viver longe do país natal.
“Vivi uma experiência muito similar em termos de sentimento, de querer voltar a casa e não conseguir. Mas, por outro lado, recebi do povo brasileiro algo que me deu força para não desistir da guerra, da minha guerra na altura, que era voltar a casa”, conta o empresário.
Esta guerra é diferente, mas os braços abrem-se com a mesma vontade. João tem um quarto praticamente vazio e as mobílias a caminho para o preencher. “É uma decisão tomada de uma forma muito ponderada, porque estamos a receber um desconhecido dentro de casa”, diz. E mesmo que muitos amigos tenham alertado para os perigos e barreiras, a gravidade do conflito pesou mais na ponderação. “O Google Tradutor vai ser um excelente amigo para nos ajudar a comunicar”, ri-se João.
Ao preencher os dados na plataforma, João indicou estar disponível para dar alojamento e comida. Apesar de existirem apoios públicos para os refugiados que chegam a Portugal, as associações que trabalham nesta área alertam que o processo poderá ser demorado. Por isso, assumir esta responsabilidade poderá implicar um compromisso a médio prazo. Porque a guerra, em si, não tem prazo de validade. E encontrar um trabalho num país estrangeiro, onde não se domina a língua, pode também ser um caminho demorado rumo à independência.
“Esta decisão foi tomada por uma questão de afeto, de empatia, por pessoas que podíamos ser nós. Acredito que, num momento destes, em que as pessoas foram marcadas negativamente, podemos ter um papel positivo na vida dessas pessoas”. É essa marca positiva que centenas de famílias portuguesas, tal como estas três, estão prontas para dar sem pedir nada em troca. Apenas de portas abertas, para quem precisa de um teto.