Quando os soldados ucranianos avançarem sobre a cidade de Kherson há dois cenários que podem encontrar: uma localidade vazia e abandonada pelos russos, que ali estão desde 24 de fevereiro, data do início da guerra, ou um contexto de batalha sangrenta que poderá decidir o destino de um dos mais importantes bastiões de Moscovo na Ucrânia.
O vice-governador da região, que foi anexada em referendo (não reconhecido internacionalmente) pela Federação Russa a 30 de setembro, admitiu que "muito provavelmente" as suas unidades "partirão para a parte de Kherson que se encontra na margem esquerda” do rio Dniepre. Mas as palavras de Kiril Stremousov não fizeram Kiev baixar o alerta, mesmo que a bandeira russa tenha sido retirada da sede da administração regional de Kherson, onde estava hasteada desde março.
“Algo interessante irá certamente acontecer em breve em Kherson”, admitiu o secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia, Oleksiy Danylov, comentando a remoção da bandeira russa.
A porta-voz do Comando Sul do exército ucraniano, Nataliya Gumenyuk, advertiu que a remoção da bandeira poderá ser um estratagema para criar a ilusão de uma retirada russa.
“Se tivermos em conta que há muito que se preparam para os combates de rua, (...) não devemos ter pressa em regozijar-nos”, disse. Caso se venha a verificar que os russos, afinal, não saíram do local, poderemos estar perante um novo crime de guerra: perfídia. Este conceito refere-se a uma ação de má-fé por parte de um dos lados da guerra, neste caso da Rússia. Acreditam os ucranianos que os comandados de Moscovo podem estar a barricar-se nas casas que dizem estar desertas, fardando-se como civis ou até utilizando uniformes falsos, tudo práticas internacionalmente condenadas.
O artigo 8 do Estatuto de Roma, tratado adotado pelo Tribunal Penal Internacional, refere que "fazer uso indevido de uma bandeira de tréguas, da bandeira ou da insígnia e uniforme militar do inimigo" e "matar ou ferir traiçoeiramente indivíduos que pertençam à nação ou exército hostil" são atos que estão previstos como crime de perfídia, configurando assim um crime de guerra.
O major-general Isidro de Morais Pereira afirma que este é um crime de guerra "particularmente desonesto", uma vez que se baseia numa traição e numa ação de má-fé. À CNN Portugal, o especialista lembra que "os combatentes devem exibir armas e usar o uniforme, exibindo as insígnias".
"O indivíduo, quando despe o uniforme e se mistura com a população, está a usar uma artimanha e a agir de má-fé", acrescenta, afirmando não ter dúvidas de que este crime estará em causa caso os russos fiquem mesmo em Kherson, mesmo depois de dizerem que não o vão fazer.
Sobre a necessidade da criação de uma regulação para esta prática, diz Isidro de Morais Pereira que "na guerra nem tudo é válido". E foi por isso que instituições como a Organização das Nações Unidas decidiram criar normas que regulamentem práticas que não devem ocorrer, nem mesmo num cenário bélico. Como o assassínio de prisioneiros de guerra ou o genocídio, a perfídia é um desses crimes.
Diferente da perfídia é o chamado ardil de guerra, uma prática que, segundo a Convenção de Genebra, não configura crime, uma vez que "não convida à confiança de um adversário". Na perfídia é essa mesma confiança que é atraiçoada. Quando a Ucrânia alegou uma grande contraofensiva a sul do país, para depois surgir em força pelo norte, o que permitiu a retomada de quase toda a região de Kharkiv, foi um caso de ardil de guerra, mas não de perfídia.
A perfídia de outrora
O major-general Isidro de Morais Pereira aponta que existem vários exemplos de perfídia ao longo dos anos e das guerras que têm sucedido. O militar fala de casos na Segunda Guerra Mundial, na Guerra do Vietname e nas guerras coloniais, "seguramente" na Guerra Colonial que Portugal travou contra as colónias em África.
Do exército japonês chegam alguns dos melhores exemplos. No início do século XX, e à procura do domínio da Manchúria e da Coreia, os impérios russo e japonês envolveram-se numa curta mas violenta guerra. Richard B. Jackson, que publicou um texto sobre perfídia que foi editado pelo governo dos Estados Unidos, refere que os japoneses utilizaram "claramente" as roupas de civis para "tentarem matar ou ferir traiçoeiramente" soldados russos. Na mesma guerra foi utilizada ainda a técnica de rendição através de bandeira branca, que depois serviu para um ataque das tropas japonesas aos soldados russos que se aproximaram indefesos da cidade em questão.
Diz Richard B. Jackson que situações semelhantes aconteceram nas guerras Franco-Prussiana ou até na Guerra Civil dos Estados Unidos.
Bem depois disso, na Segunda Guerra Mundial, e já num momento perto do desespero, o exército de Adolf Hitler utilizou o mesmo recurso, nomeadamente durante e após aquela que ficou conhecida como a Batalha das Ardenas, e que os alemães esperavam que fosse uma resposta aos avanços ocorridos após o Dia D. Depois dessa batalha, o coronel Otto Skorzeny, que liderou essa ofensiva e também se tornou famoso por liderar a operação de salvamento do italiano Benito Mussolini, ficou conhecido como "o homem mais perigoso da Europa". Tudo porque, já numa fase final da guerra, decidiu não se render, optando por reunir soldados alemães que falassem bem inglês para, juntos, enganarem as tropas norte-americanas. O grupo vestia-se com roupas do exército norte-americano, enganando os soldados inimigos e matando-os.
Otto Skorzeny, bem como nove dos seus soldados, foi acusado pelo "uso impróprio de uniformes americanos para entrar em combate disfarçado e disparar traiçoeiramente, matando membros das forças armadas dos Estados Unidos. Acabou por ser ilibado, com parte da justificação a ser baseada na argumentação de que as tropas aliadas também fizeram o mesmo.