De um momento para o outro, a 19 de janeiro, todos os controlos de navegação GPS de aviões, carros e telemóveis deixaram de funcionar. Era um dos mais fortes ataques de guerra eletrónica em território de um país da NATO, no território que liga a Polónia aos países do Báltico, uma região que é considerada “o calcanhar de Aquiles” da Aliança. Dias depois, Vladimir Putin viajou de surpresa para o exclave de Kaliningrado (entre a Polónia e a Lituânia), onde teve origem o ataque. Estes sinais levaram vários líderes europeus a alertar que o tempo começa a escassear para que a Europa se prepare para um conflito que pode estar mais próximo do que se pensa.
“A Rússia agora é o inimigo da Europa, quer a Europa queira quer não. A Europa achou a certa altura que a guerra não ia voltar - começa a faltar tempo para se rearmar. A não existência de um exército dissuasor na Europa coloca em perigo a nossa própria existência”, afirma Diana Soller, especialista em Relações Internacionais.
E os principais líderes europeus sabem-no. O presidente francês, Emmanuel Macron, voltou a apelar em janeiro para que a indústria de Defesa europeia aumente significativamente a sua produção e a inovação “ampliando a transformação que já começou” para “não deixar a Rússia ganhar”. O ministro da Defesa alemão, Boris Pistorious, estabelece mesmo um prazo para que isso aconteça. Entre cinco a oito anos, é essa a janela temporal que a Europa tem para “assegurar a segurança do seu próprio continente”.
Mas esse é tempo que a Europa pode não ter, caso a Ucrânia não receba os meios de que precisa para defender o seu território contra a invasão russa. Atualmente, nem a União Europeia nem os Estados Unidos conseguem aprovar os seus pacotes de ajuda a Kiev devido a impasses políticos. O líder dos serviços secretos norte-americanos classificou este potencial abandono da Ucrânia como “um erro de proporções históricas”. O equilíbrio entre produzir equipamentos militares para enviar para a Ucrânia e para rearmar as forças armadas pode mesmo levar a fortes atrasos.
“Há países que não conseguem sequer ceder mais mísseis ou munições à Ucrânia porque não têm sequer para si. Falar em rearmar num prazo de cinco anos é completamente irrealista. Esse processo vai demorar pelo menos entre dez a 15 anos. E Moscovo sabe disso”, sublinha o antigo embaixador da NATO António Martins da Cruz.
Por esse motivo, Daniel Fried, antigo embaixador dos Estados Unidos na Polónia, não hesitou ao afirmar que se a Rússia sentir que pode ocupar uma parte do território da NATO sem repercussões assim o fará. Principalmente numa altura em que a maior parte dos membros da Aliança ainda não cumpre a meta estabelecida em 2014, em que os aliados se comprometiam a gastar pelo menos 2% do PIB na Defesa. Dos 31 membros da NATO, apenas 11 gastaram mais de 2% em 2023. Portugal pertence ao grupo dos que gastam menos do que o prometido.
“Se continuarmos a apoiar a Ucrânia temos cinco anos, senão podemos ter uma ameaça às portas dentro de três”
Mesmo com as elevadas perdas registadas no campo de batalha na Ucrânia, o exército russo continua a ser um dos mais poderosos do mundo. A Rússia tem neste momento mais de três milhões de soldados, entre militares no ativo e reservistas. Muito à frente dos exércitos mais numerosos do restante continente europeu: Itália, 337 mil soldados; França, 303 mil; Espanha, 199 mil. São números do think thank Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.
No campo material, ainda se sente o peso da gigantesca herança militar soviética. Em 2023, a Rússia tinha 6.800 carros de combate, um número muito superior aos da Polónia (647), de Espanha (327) e da Alemanha (376). No entanto, entre veículos destruídos, abandonados e capturados, pelo menos 2678 tanques de guerra russos foram perdidos na Ucrânia, de acordo com o grupo Oryx. Ainda assim, Moscovo teria força suficiente para ameaçar significativamente a segurança europeia, caso os Estados Unidos tenham as suas atenções noutras regiões.
“A Europa, neste momento, não tem capacidade de se defender sozinha face a uma Rússia que se está a rearmar e a converter a economia numa economia de guerra. Em 2024, Moscovo vai aplicar um terço do orçamento em Defesa. A Europa está a reagir mas de uma forma ainda muito lenta”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira.
Estagnada por décadas de paz após a queda da União Soviética, a indústria militar europeia tem sido lenta a reagir. Em parte porque esta indústria, que envolve avultados investimentos, e as empresas só admitem aumentar o número de fábricas quando os governos se comprometem com contratos de vários anos que assegurem o escoamento da produção. Mas é preciso ter em conta a inflação que está a afetar a indústria, devido à elevada procura. Uma munição de 155 mm, o calibre pesado mais utilizado pelas forças da NATO e da Ucrânia, viu o preço disparar dos dois mil euros para os oito mil. Um aumento de 300% em menos de dois anos.
No início da invasão russa da Ucrânia, os vários países da União Europeia produziam cerca de 230 mil munições de 155 mm por ano. No final de 2023, esse número aumentou para 600 mil, segundo o ministro da Defesa da Estónia, Hanno Pevkur, que estima que possa atingir o milhão de unidades em 2024. No entanto, o ministro admite que o problema dos países europeus para repor os seus armazéns é grave. “A minha estimativa é que teremos de produzir nos próximos dez anos cerca de 3 milhões de munições por ano.”
Desde o início do conflito, a Rússia tomou medidas para aumentar a produção de quase todos os tipos de equipamentos. Várias fábricas trabalham interruptamente durante 24 horas, com os trabalhadores a desdobrarem-se em três turnos de oito horas. O Governo russo prevê também gastar 6% do PIB em defesa, quando no ano anterior tinha gastado 3,9%. Segundo o think tank Carnegie Endowment for International Peace, a maior parte deste dinheiro será direcionado na produção de equipamentos militares.
“Apoiar a Ucrânia tem de ser a prioridade. É sempre melhor derrotar a ameaça no país dos outros que no nosso próprio país. Se continuarmos a apoiar a Ucrânia temos cinco anos, senão podemos ter uma ameaça às portas dentro de três”, defende o major-general Isidro de Morais Pereira.
Putin e a Rússia compreendem que não podem derrotar a NATO militarmente, só precisam de derrotar a NATO politicamente
Mas o cenário está a tornar-se cada vez mais perigoso para os aliados europeus com a possibilidade de reeleição de Donald Trump, que terá dito em privado à presidente da Comissão Europeia que a NATO estava morta e que os Estados Unidos não responderiam a um pedido de auxílio da Europa em caso de ataque russo. Os especialistas acreditam que, sem o apoio militar norte-americano, a força militar europeia não é suficiente para dissuadir a Rússia de arriscar um ataque contra o território de um dos países da NATO.
Os Estados Unidos têm perto de 100 mil soldados na Europa, com a vasta maioria desta força estacionada na Alemanha e um contingente localizado na Polónia. O número de militares não é grande o suficiente para deter uma possível invasão russa, mas a ameaça de um confronto direto com o gigante americano é o suficiente para travar potenciais pretensões do Kremlin.
Por isso, os especialistas acreditam que o cenário mais provável passa por a Rússia tentar derrotar a aliança politicamente, ao fazer com que os membros da NATO não respondam à ativação do Artigo 5.º, que faz com que os aliados prestem auxílio a um membro atacado. "Vamos assistir à tentativa de influenciar eleições, ciberataques, uso de refugiados, uso de aliados informais como Viktor Orbán para destabilizar a União Europeia", afirma Diana Soller.
“Putin e a Rússia compreendem que não podem derrotar a NATO militarmente, só precisam de derrotar a NATO politicamente, tornando efetivamente redundante o Artigo 5º”, diz Ed Arnold, investigador para a segurança europeia no Royal United Services Institute (RUSI), um think tank britânico ao jornal Politico.
Apesar de tudo, a Europa pertence ao grupo que tem países com armas nucleares. Tanto França como Reino Unido têm um arsenal nuclear considerável. Ao todo, os dois países têm 515 armas nucleares prontas a usar. Ainda assim, muito atrás das 5.889 ogivas que a Rússia herdou da União Soviética. Para o embaixador Martins da Cruz, este armamento não é forte o suficiente para travar as ambições do Kremlin.
“Não, a Europa não tem capacidade nem de se defender nem de exercer dissuasão em relação à Federação Russa sem o guarda-chuva de Defesa americano. Reino Unido e França têm armas nucleares, mas não são fortes o suficiente para ser uma força de dissuasão para a Rússia”, garante o embaixador.
Mas para Diana Soller, apesar de “ter as primárias praticamente ganhas”, a possível eleição de Donald Trump não significa que os Estados Unidos vão virar as costas à Europa e à Ucrânia porque a Rússia e o seu presidente não têm as mesmas prioridades de 2016. Hoje a Rússia está muito mais próxima da China de Xi Jinping, que Donald Trump vê como uma ameaça estratégica à liderança dos Estados Unidos.
Ainda assim, Diana Soller defende que o antigo presidente tem razão ao criticar os aliados europeus por não gastarem o necessário na sua própria defesa. A investigadora insiste que se a União Europeia demonstrasse ser uma parceira fundamental do ponto de vista estratégico para Trump, o político republicano dificilmente defenderia o desmantelamento da aliança. "A predisposição de Trump em relação à NATO continua a não ser positiva, mas, com muita pena minha, Trump tem razão. Estamos com um atraso muito grande. O facto de não se rearmar à velocidade necessária faz com que a Europa não seja um elemento dissuasor e que a Rússia nos veja como elo mais fraco."