«Deli»: quando o horrível nos seduz - TVI

«Deli»: quando o horrível nos seduz

  • Portugal Diário
  • Luís Mateus
  • 22 ago 2006, 17:32
«Deli»

O livro do indiano Khushwant Singh conta-nos a história de uma das mais interessantes cidades do mundo: a suja, agressiva e sensual Deli

Deli, Índia. Bhagmati, prostituta em Deli, Índia. Comparar uma cidade eterna a uma mulher que, reconhecidamente, não poderia participar em qualquer concurso de beleza - segundo os padrões antigos e actuais, ressalve-se -, é um excelente começo para um livro. E «Deli» (Cavalo de Ferro, 2006) de Khushwant Singh, um dos mais importantes escritores indianos dos nossos tempos, tem esse ponto de partida: o amor do narrador à cidade e à mulher - chamemos-lhe assim, por enquanto -, para os quais mais ninguém gosta de olhar.

«Sendo há muito maltratadas por gente rude, aprenderam a ocultar os seus sedutores encantos por trás de uma máscara de fealdade repugnante. É apenas aos seus amantes, entre os quais me encontro, que revelam as suas verdadeiras naturezas», diz o narrador logo nos primeiros parágrafos, justificando a sua paixão por algo e alguém de que ninguém se sentiria atraído. E parte na dura tarefa de relatar a sujidade e fealdade de ambas, com a sua repulsa inicial a transformar-se aos poucos num total estado de dependência.

O realismo de Singh é nu e cru, sem máscaras ou tentativas de camuflagem, criando um ambiente duro e agressivo para o leitor. Sem misericórdia no retrato da sua personagem principal: uma cidade pobre e suja, onde não se consegue disfarçar os dejectos, os cadáveres no rio Jamna, o sangue e as vítimas, e os problemas entre etnias. Nem o sexo é esquecido. É sim exposto, relatado do princípio ou fim, como um filme para maiores de 18, sem mudanças de plano convenientes, o que concede um elevado grau de sensualidade e aumenta o tom emocional de «Deli». Que fica ainda mais provocante com a descoberta sobre Bhagmati: ela é uma hijda, uma hermafrodita, uma mulher-homem.

As histórias que fazem a cidade

O autor mostra-nos a sua faceta de historiador, contando-nos as histórias que fizeram a cidade, contadas na suposta primeira pessoa pelos protagonistas. Os conquistadores, os assassinos, o imperador Aurangzeb Alamgir, o poeta Meer Taqi Meer, a meio britânica meio nativa Alice Caldwell, os construtores de Nova Deli e os despojados relatam as suas vidas e, ao mesmo tempo, as transformações que a cidade sofre desde a era dos sultões até ao assassinato de Indira Ghandi, passando pela conturbada relação com os ingleses.

«É uma grinalda ardente. Dois rapazes erguem o pneu acima da cabeça do Budh Singh e poisam-no lentamente até o depositarem sobre os ombros dele. Budh Singh grita, em agonia, enquanto se desmorona no chão. Os rapazes riem-se e dão o grito sikh da vitória: "Boley So Nihal! Sat Sri Akal"» É um Khushwant Singh crítico que fecha o livro, atribuindo à guerra entre etnias, que existe desde sempre - desde a época dos sultões -, as culpas pela constante destruição de Deli. Atribuindo aos indianos a responsabilidade pelos problemas da cidade e de todo o país. Do próprio povo. Afinal, nada mudou em tantos anos.

A obra não é de leitura fácil. Merecia mesmo um índice remissivo ou a exaustiva repetição de notas de rodapé devido ao contínuo uso de termos que não nos são comuns. E é possível que alguém se sinta ofendido ao lê-lo. «Deli» pode adorar-se ou detestar-se, mas não deixa de ser uma excelente obra.
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