Aborto e excomunhão - TVI

Aborto e excomunhão

  • Portugal Diário
  • 22 jan 2007, 16:22

Texto de opinião de Jerónimo Trigo, professor de Teologia Moral da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa

Na Igreja Católica o tema do aborto, como aliás outros, é tratado a dois níveis; o ético-teológico e o jurídico ou canónico. No primeiro, sem dúvida o mais importante e determinante, é definido como acto moralmente grave, como pecado, sempre que as pessoas envolvidas tenham o conhecimento e o consentimento suficientes. O pecado é perdoado pelo Sacramento da Reconciliação, vulgarmente chamado Confissão. Esta dimensão teológico-moral é intrínseca à própria realidade; não pode não ser assim.

O Código de Direito Canónico considera o aborto como um delito, este é um conceito estritamente jurídico. Sendo delito, exige uma sanção penal que é a excomunhão. Vejamos o que isto significa: O que se pretende é chamar a atenção para a defesa da vida desde o seu início, e incuti-la na consciência dos fiéis e, consequentemente, para a gravidade do acto do aborto, tanto mais quanto na mentalidade, nos costumes e nas legislações civis é muitas vezes aceite e até legalizado. Por outro lado, se essa disciplina canónica fosse modificada, poder-se-ia, erradamente, considerar que o juízo moral sobre o aborto tinha sido modificado.

O cânone 1329 nº2 diz: «quem provocar aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latæ sententiae». Expliquemos: para que haja pena é necessário que se tenha dado de facto o abortamento. Na pena incorrem também os cúmplices e os cooperadores (cf. c. 1329). O código prevê alguns casos de pena em que incorre pelo simples facto de se ter cometido o delito, isto é, automaticamente, sem processo, sempre que se verificarem as circunstâncias exigidas, isso é o que significa latae sententiae. O aborto é um deles.

Dito isto, é preciso acrescentar o que o mesmo Código prevê: não incorre na pena, quem «sem culpa ignorava a existência da pena» (c. 1324, I, 9º); quem não tenha completado dezasseis anos de idade (cf. cc. 1323, I 1324, 4º), há intérpretes que consideram só a maior idade, os dezoito anos completos (cf. 97 , nº1); quem está no «uso imperfeito da razão» (c. 1324 nº1, 1º) e quem agiu «coagido por medo grave, mesmo só relativamente, ou por grave incómodo» (c. 1324, I, 5º). Por estes motivos, sobretudo pelo último de interpretação tão ampla, estão isentas da pena muitas mulheres que praticam o aborto.

A excomunhão significa, como a palavra indica, a exclusão da comunidade dos fiéis. Não se trata da comunhão substancial de pertença à Igreja, Povo de Deus, Corpo de Cristo. É uma exclusão de significado canónico que tem incidência no foro externo e que priva de alguns direitos e deveres que decorrem da condição de baptizados (cf. c. 1331). Não significa condenação eterna, como às vezes pode perpassar pelo imaginário comum, nem é um juízo definitivo sobre a pessoa. Esse pertence só a Deus. A pena de excomunhão é, em linguagem canónica, uma censura, isto é, uma pena medicinal. Não é de carácter expiatório nem punitivo. É pedagógica. «Com uma sanção assim reiterada, a Igreja aponta este crime [o aborto] como um dos mais graves e perigosos, incitando, deste modo, quem o comete a ingressar diligentemente no caminho da conversão. Na Igreja, de facto, a finalidade da pena de excomunhão é tornar plenamente consciente da gravidade de um determinado pecado e, consequentemente, favorecer a adequada conversão e penitência»(Enc. Evangelium Vitae, 62).

Quem pode remitir da pena é o bispo diocesano (cf. c. 1355, 2) que pode delegar a faculdade de remissão nalguns sacerdotes, conforme os tempos, os lugares e outras circunstâncias. Em caso de dificuldade no contacto com estes, qualquer outro o pode fazer, decorrendo daí alguma diligência ulterior.

A dimensão canónica pode ser retirada da disciplina eclesial. Isso não tocaria a teológico-moral. Há teólogos, juristas e pastores que o propõem, por considerarem que tem pouca relevância prática; às vezes até confunde pela complexidade do procedimento e pelo arcaísmo da linguagem. De qualquer modo, pode ser entendida na perspectiva de Igreja como «mãe e mestra».
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