Um país virado para si próprio ou um mundo de costas voltadas para o Ocidente. O que podem significar as eleições turcas "mais importantes de sempre"? - TVI

Um país virado para si próprio ou um mundo de costas voltadas para o Ocidente. O que podem significar as eleições turcas "mais importantes de sempre"?

As sondagens mostram equilíbrio, mas as visões dos dois candidatos às eleições turcas podem traçar caminhos muito diferentes, que podem vir a mudar o mundo

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14 de maio, todos os olhos estão postos na Turquia. O destino de 85 milhões de pessoas vai a votos, mas em jogo está também o desfecho de alguns dos assuntos mais importantes da atualidade. Numa altura em que grandes potências continuam a lutar por influência um pouco por todo o mundo, estas eleições são a bifurcação para dois caminhos distintos: um mundo mais centrado na Ásia ou uma Turquia mais virada para si própria.

“São as eleições mais importantes na Turquia, desde sempre. Erdogan é o líder político na Turquia com mais anos de poder. Se Erdogan ganhar será uma continuação daquilo que temos, com a alteração da ordem internacional para um mundo cada vez menos centrado no Ocidente”, afirmou Isabel David, professora de Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e especialista em política turca.

Mas o cenário de derrota de Erdogan não é tão improvável quanto já se pensou. Desde o início oficial da corrida à presidência que o líder da coligação que se opõe ao atual presidente tem aparecido sistematicamente à frente nas sondagens. Atualmente, Kemal Kiliçdaroglu aparece com 49,3% das preferências dos votos, com Erdogan ligeiramente atrás, com 47%.

Visto como alguém “capaz de construir pontes”, Kiliçdaroglu é a figura escolhida pela oposição para aglomerar o improvável conjunto de forças políticas que procuram fazer cair, de uma vez por todas, o grande sultão da política turca: Recep Tayyip Erdogan. “Vamos acabar com um governo opressivo por meios democráticos”, promete o economista que virou político. Mas o que sabemos sobre o economista, de 74 anos, que ameaça o poder de Erdogan? Chefia uma coligação chamada Millet (Nação, em português), com seis partidos e por uma formação de esquerda defensora dos direitos da minoria curda, que poderá ter a sua última oportunidade de terminar nas urnas com o crescente autoritarismo de Erdogan.

Durante quase duas décadas em que liderou o país, inicialmente como primeiro-ministro e depois enquanto presidente, Erdogan cultivou um complexo equilíbrio entre o Ocidente e o Oriente que frustrou muitos dos seus aliados da NATO e parceiros da União Europeia. Esse papel tornou-se muito mais traiçoeiro depois do início da guerra na Ucrânia, com Ancara a enviar milhões em armamento para Kiev, enquanto se recusava a impor sanções a Moscovo, ajudando várias indústrias russas a contornar as restrições.

Para a Turquia, a Rússia oferece várias oportunidades para fazer dinheiro, mas também vários perigos. Este último ano, os milhões russos inundaram o país de Erdogan. Ao todo, o comércio entre os dois países ultrapassou os 70 mil milhões de dólares. Mais de 1.363 empresas russas foram abertas na Turquia, no último ano, e mais de 155 mil vistos de residência foram atribuídos a cidadãos russos. Ao mesmo tempo que aproveitava para comprar gás natural com acentuados descontos, Ancara enviava apoio militar para a Ucrânia.

“Com Erdogan, a ordem mundial pode tornar-se cada vez mais orientada para a Ásia”, sublinha a especialista.

Esta ambiguidade, que Erdogan promete manter caso vença as eleições, é muito popular internamente, apesar do mal-estar que causa nos parceiros ocidentais. Mas o que pode mudar caso Kilicdaroglu consiga vencer as eleições?

O líder da oposição turca captou a atenção de milhões de turcos com promessas do fim dos vistos para viajar para a União Europeia – promessa essa que insiste que seria cumprida apenas três meses depois de assumir o poder – ou de ameaçar a Grécia com uma intervenção militar. Mas alguns dos conselheiros mais próximos de Kilicdaroglu colocam água na fervura.

É o caso do antigo embaixador Unal Cevikoz, conselheiro da campanha para relações externas, que admite que o governo de oposição estaria determinado em voltar a aproximar Ancara da União Europeia e da NATO. O diplomata disse mesmo que a Turquia terá uma política externa baseada “na não-intervenção nos assuntos internos dos vizinhos” e de “uma política externa imparcial e adesão às normas internacionais”.

Apesar de esta visão chocar com a visão não-alinhada de Erdogan, que utiliza a sua presença na NATO para intervir regionalmente em países como a Síria ou na Líbia, ela não é nova internamente. Por isso, a Aliança Nacional, liderada por Kilicdaroglu decidiu adotar o slogan não intervencionista do seu fundador, Mustafa Kemal Atatürk: “Paz em casa, paz no mundo”. Cevikoz quer e promete uma Turquia que se apresente como “mediador honesta”.

“A nossa prioridade fundamental seriam questões centrais de segurança nacional, como a ameaça terrorista que vem da Síria e do Iraque. Porque é que estamos na Somália? Não há razão. Porque é que temos milhares de soldados no Catar?”, questionou um membro da campanha em declarações à publicação Middle East Eye.

Mas as diferenças geopolíticas entre os dois candidatos ficam-se por aqui. Em declarações à CNN Portugal, a especialista em política turca explica que a posição de Kiliçdaroglu não é muito diferente da de Erdogan, particularmente no que toca à adesão da Suécia à NATO.

“A Turquia colocou-se na situação de ser uma potência com grande visibilidade internacional. Antes disso, praticamente não se envolvia em questões externas, mas esse ativismo tem rendido, desde 2003, grandes dividendos. A projeção de poder é uma das armas que Erdogan tem apresentado nas últimas semanas. É uma questão que interessa muito aos turcos, são os herdeiros do Império Otomano”, explica.

Apesar de ser na relação com os Estados Unidos e com a Rússia que todos os olhos estão postos, o cenário não deverá ser muito diferente. Kiliçdaroglu e a sua equipa parecem dispostos a tentar manter o equilíbrio de poder entre Moscovo e Washington, ao afirmarem-se como mediadores do conflito na Ucrânia. Ainda assim, Kiliçdaroglu deu sinais de proximidade com a Casa Branca ao encontrar-se com o embaixador norte-americano Jeff Flake, o que motivou a sérias críticas da parte de Erdogan, que vê na presença americana uma ameaça, e acusou Biden de “ter dado a ordem” de que ele fosse derrotado.  

“Uma vitória de Kiliçdaroglu vai trazer alterações a nível interno, com mais democracia e maior respeito dos direitos humanos. Podemos também esperar uma Turquia mais inclusiva e respeitadora das suas minorias. Mas não partilho da esperança de que a Turquia passe para o campo ocidental, caso Kiliçdaroglu vença. É certo que o candidato não será tão pró-russo como Erdogan, no entanto, esse caminho que a Turquia poderá trilhar será muito virado para si própria” frisa Isabel David.

Mas o que pode fazer a Turquia mudar de rumo é a economia. O país atravessa uma grave crise inflacionária, muito agravada por uma política monetária promovida por Erdogan, que insistiu em baixar as taxas de juro num período em que a lira turca perdia valor. Além da inflação e o custo de vida, do desemprego e dificuldade em encontrar trabalho, outras preocupações relacionam-se com o elevado custo das rendas de casa e a violência nas ruas.

Segundo o Grupo de pesquisa ENAG, uma instituição independente fundada em 2020 para acompanhar o índice de preços no país, indicou que a inflação anual na Turquia atingiu 105% em abril de 2023, muito acima dos números oficiais que apontam para 43% (mais 15 pontos face a 2002). Além disso, o desemprego afetou 22% da população ativa, em particular a mais jovem.

E Kiliçdaroglu foi buscar precisamente uma figura da política turca que representa a estabilidade económica: Ali Babacan, ex-ministro da Economia do AKP de Erdogan, que governou de 2002 a 2007, um período de grande estabilidade e crescimento económico na Turquia."O czar da economia de Kilicdaroglu tem uma visão neoliberal que choca com a visão social-democrata do líder da coligação", refere Isabel David.

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