O Sindicato Independente dos Médicos (SIM) e a Federação Nacional dos Médicos (FNAM) tecem duras críticas ao plano apresentado esta segunda-feira pela Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) e que dita o encerramento, em Lisboa e Vale do Tejo, de três urgências pediátricas durante a noite e ainda do encerramento durante todo o fim de semana deste serviço no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures.
Os dois sindicatos dizem que “é um remendo” e não uma solução definitiva para um problema central e crónico do setor público da saúde e que se tem espelhado em outras especialidades: a falta de médicos nos hospitais e unidades de saúde primárias e a incapacidade de os fixar no Serviço Nacional de Saúde (SNS). “A pergunta que fica é: o que vai encerrar a seguir?”, questiona a FNAM.
“Quando falamos em reestruturação, isso não pode ser sinónimo de encerramento”, começa por dizer Jorge Roque Cunha, dirigente do SIM, que acusa o Governo de não “tomar medidas de investimento” tanto a nível de contratação como a nível de melhorias salariais e, com isso, “fazer com que os médicos que ficam no SNS tenham uma grande carga de trabalho”, dando como exemplo os já sobrecarregados pediatras no Hospital D. Estefânia - um dos 11 hospitais que se manterá sempre aberto a partir de dia 1 de abril e até 30 de junho e que irá receber pacientes de outras unidades encerradas, como a de Loures ou de São Francisco Xavier (esta última irá funcionar apenas com horário das 9:00 às 22:00).
“Tendo o Hospital D. Estefânia no ano passado feito 84 mil atendimentos sem qualquer reforço das suas equipas, não é possível estarmos a pedir mais trabalho a estes colegas”, argumenta o sindicalista.
O “remendo” que o SIM e a FNAM criticam foi também apontado como falha por parte de Gonçalo Cordeiro Ferreira, diretor da Pediatria do Hospital Dona Estefânia, que em entrevista ao jornal Público diz que o plano apresentado é “confuso e complicado” e que, ao contrário do que foi feito no Porto, “o problema é que vamos ficar mais ou menos na mesma, com uns sítios que fecham e outros que se mantêm abertos”.
Joana Bordalo e Sá, da Federação Nacional dos Médicos, não hesita também em apontar o dedo ao plano dos Serviços de Urgência Pediátrica na Região de Lisboa e Vale do Tejo, acusando o Executivo de tornar ainda mais carenciadas zonas que estão já em défice de cuidados de saúde.
“Ainda por cima fecham duas urgências que são dramáticas, que é a de Torres Vedras e a de Loures, que é onde há muito poucos médicos de família, são concelhos muito carenciados e famílias não têm outra alternativa à urgência. As famílias ficam desprotegidas. Se não tiverem carro, vão andar 50 km que em termos de transportes são muito mal servidos?”, questiona a médica, dizendo que há sempre a alternativa da ambulância, mas que até esta pode ficar aquém do desejado quando implica o percurso de longas distâncias - e há casos em que para aceder à urgência será necessária uma viagem de mais de 40 quilómetros.
Mas até aqui há um problema, alerta o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP). Em declarações à Rádio Renascença, António Nunes garante que não foi consultado sobre a reforma nas urgências, o que considera uma falha, uma vez que, tal como o próprio Ministro da Saúde disse, “mais de 90%” dos serviços feitos através do Sistema Integrado de Emergência Médica (SIEM) foram realizados por corporações de bombeiros.
“Como é que alguém que não tem ambulâncias encerra uma urgência hospitalar sem ouvir os bombeiros? É preciso saber se há capacidade de transporte dos doentes que batem lá à porta. E é preciso saber se o número de ambulâncias disponíveis chega”, diz António Nunes à RR.
“Teve de se encontrar uma situação para remendar o problema mas não se resolve o que originou o problema, que é a falta de médicos”, lamenta a dirigente da FNAM.
Loures acusa Governo de comprometer direito constitucional
O plano da DE-SNS não caiu bem aos utentes e às autarquias afetadas, como a de Mafra e Torres Vedras. A Câmara de Loures acusa o Governo de colocar em causa o direito constitucional de acesso à saúde.
Sobre este ponto, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia explica que “a Constituição consagra o direito ao acesso à saúde, mas este direito é um direito de natureza programática, significa que depende do que é economicamente possível”, defendendo que “o Governo tem de justificar que não tem recursos para manter essa urgência aberta, é preciso que haja uma fundamentação razoável”.
Na prática, esclarece, “o direito [ao acesso à saúde] existe e o Estado tem o dever de prestar cuidados de saúde à população geral, mas esse direito, como é uma prestação do Estado, depende das condições económicas que o Estado tiver para prestar”.
Se a medida é constitucional ou não, Jorge Bacelar Gouveia diz que “não há uma resposta óbvia, é preciso saber se esse corte [nas urgências] tem uma justificação ou se o dinheiro está a ser desviado para outros fins”. Deste modo, a Câmara de Loures “pode ter razão se o Estado não conseguir justificar esta decisão”, explica.
O constitucionalista diz que “é preciso explicar que há um núcleo mínimo do direito que nunca pode deixar de ser respondido”, mas considera que o da saúde “pode estar a ser afetado”, pois trata-se de “um núcleo de acesso a cuidado de saúde urgente, as crianças ficam sem urgência pediátrica, não há um Estado que funcione quando um núcleo destes é afetado”.
A contestação contra o encerramento da urgência pediátrica em Loures aos fins de semana foi também manifestada pelos utentes e o ministro da Saúde Manuel Pizarro, já esta terça-feira, garantiu estar a trabalhar para que as urgências pediátricas do hospital em Loures estejam abertas também ao fim de semana. Reconhecendo o “incómodo” de uma deslocação maior, o ministro da Saúde afirma, no entanto, que os cuidados de saúde dos utentes do Beatriz Ângelo estão assegurados pelo Hospital Santa Maria e pelo D. Estefânia, que são das 11 que não encerram.
Sobre as declarações do Ministro da Saúde e que, apenas um dia depois, colocam em causa a decisão da DE-SNS, tanto o Sindicato Independente dos Médicos como a Federação Nacional dos Médicos dizem que é apenas mais um sinal de “incoerência” e de “decisões unilaterais”.
Jorge Roque da Cunha espera “muito sinceramente” que o Executivo dê “um passo em frente e garanta a uma população com cerca de 400 mil portugueses, 150 mil sem médico de família, que tenham acesso a urgência de pediatria”, revertendo, assim, o para já estipulado pela DE-SNS.
“O Governo tem naturalmente de contratar médicos pediatras e deve fazer uma introspeção muito séria da especialidade do seu governo quando decidiu acabar com as parcerias público-privadas”, diz, referindo-se ao Hospital Beatriz Ângelo, que deixou de ser uma PPP em 2021.
Joana Bordalo e Sá também espera que a urgência pediátrica de Loures não feche aos fins de semana, mas critica sobretudo a “falta de coordenação” entre a recém-criada Direção-Executiva do SNS e o Ministério da Saúde. “Pela sequência do que foi demonstrado, há alguma falta de coordenação, mesmo em relação a Loures, primeiro iam fechar, depois já não, até garantiram isso aos autarcas, afinal fecham e depois não fecham, há alguma incoerência”, lamenta.
Verão pode trazer mais encerramentos
Na deliberação da DE-SNS está prevista uma “potencial redução dos pontos de rede no verão”, isto é, o encerramento de mais urgências pediátricas a partir de 1 de julho, “adaptando a oferta à procura de cuidados”.
Jorge Roque da Cunha é taxativo: “As pessoas não escolhem o dia em que adoecem.” Para o sindicalista, “o plano de encerramento não é correto, sabemos que há o eufemismo de ser provisório, mas também sabemos que em Portugal rapidamente se passa a provisoriamente definitivo”.
O sindicalista alerta ainda que o eventual encerramento de mais urgências de pediatria (ou de outra especialidade) irá resultar numa ainda maior sobrecarga dos especialistas. “Estes médicos, para além da urgência, têm de responder na consulta externa, muitos deles tem subespecialidades, como gastroenterologia ou ortopedia, por exemplo, e são necessários para responder às situações comuns e de acompanhamento”, diz.
“A pergunta que fica é: o que vai encerrar a seguir? Primeiro foi em ginecologia e obstetrícia, agora pediatria. A urgência geral de Medicina Interna também está com problemas, é um sintoma e sinal que o SNS está a ficar sem médicos”, atira Joana Bordalo e Sá.
“Isto é um desabafo, não sabemos o que vem a seguir, é um desespero”, diz a dirigente do FNAM.
Fechar mais urgências no verão é uma “atitude que parece o atirar a toalha ao chão e deixar de lutar pelo SNS”. “Assim, o SNS não resiste”, conclui Jorge Roque da Cunha.