"As Mil e Uma Noites" de um país em tempos de crise - TVI

"As Mil e Uma Noites" de um país em tempos de crise

  • Sofia Santana
  • 14 jul 2015, 11:00
"As Mil e Uma Noites", de Miguel Gomes

Miguel Gomes queria mostrar o outro lado da crise, o que não aparecia nos jornais ou nas televisões. O resultado foi um filme, dividido em três, que espelha a melancolia e o desalento nacional. A TVI24 esteve na exibição dos três volumes em Lisboa, no Cinema São Jorge

“A minha filha tem nove anos e há uns anos estava a pedinchar-me uma coisa qualquer. Eu disse ‘não tenho dinheiro’ e ela disse ‘papá, é por causa da crise?' Fiquei a pensar naquilo. Quando tinha cinco anos não conhecia aquela palavra. Achei que devia filmar a crise.”


A filha de cinco anos e o momento em que esta disse a palavra crise: eis duas das razões que levaram Miguel Gomes a querer filmar “As Mil e Uma Noites”. Queria filmar a crise, sim, mas não de uma forma qualquer, como explicou o realizador perante o público que se reuniu no Cinema São Jorge para a exibição do primeiro volume - “O Inquieto”.
 

“Achei que devia filmar a crise, mas não fazer o que a televisão e os jornais fazem, que é reportagem. Queria contar histórias”.


A obra, que conquistou o Festival de Cannes, foi exibida pela primeira vez em Lisboa nos dias 6 (primeiro volume) e 12 de julho (segundo e terceiro volumes), logo depois de ter passado pelo festival de curtas-metragens de Vila do Conde.  Os filmes estreiam nas salas de cinema a 27 de agosto, 24 de setembro e 1 de outubro
.

“As Mil e Uma Noites” compõem-se em três volumes e, por sua vez, cada volume está dividido em vários segmentos. São as histórias desse país longínquo chamado Portugal que Xerazade conta ao Rei Shahriar. São as histórias que constituem, no seu todo, a imagem de um país submetido à austeridade e os testemunhos das suas gentes, cujo futuro parece hipotecado pela crise. Há ainda um governo “aparentemente desprovido de sentido de justiça social” e os “magníficos”, os cidadãos-heróis deste retrato.

Inspirando-se na estrutura do livro de contos com o mesmo nome, o filme parte de acontecimentos reais, ocorridos entre agosto de 2013 e julho de 2014, para uma espécie de híbrido entre o registo documental e o drama, onde a ficção e a realidade, os atores e os atores não profissionais, se misturam.



A ante-estreia de “O Inquieto” foi quase um acontecimento político. O secretário-geral do Partido Socialista, António Costa, Inês Medeiros (PS), Porfírio Silva (PS) e a porta-voz do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, foram algumas personalidades da esfera partidária nacional que marcaram presença na Avenida da Liberdade. E não terá sido por acaso, não fosse este o volume que, do conjunto dos três, mais se aproxima da sátira política.

Mas antes do filme, e perante uma sala muito bem composta, Miguel Gomes subiu ao palco, chamou atores e equipa técnica, fez a festa e deixou uma curiosidade, em jeito de provocação: o primeiro país a comprar o filme para o exibir comercialmente foi a Grécia - que, como se sabe, também está mergulhada numa profunda crise económica e social.
 

“Eles lá devem ter as suas razões. Nós estamos muito contentes que o filme passe na Grécia”.





Primeiro volume: “O Inquieto”


Os planos iniciais mostram as imagens dos últimos dias dos estaleiros de Viana do Castelo. Há uma neblina densa que parece carregar em si todo o desencanto nacional. Ao mesmo tempo, seguem-se várias narrações de trabalhadores, que descrevem os seus primeiros dias nos estaleiros. No meio disto, temos Miguel Gomes a fugir do seu próprio filme: fazer ficção num tempo em que a realidade é tão avassaladora e nos esmaga é tarefa insuportável.

O regresso aos estaleiros e às vozes dos trabalhadores que anunciam a aproximação de um fim. E depois a um “exterminador” de vespas que, através de um método deveras habilidoso, se torna numa espécie de salvador das plantações e dos agricultores da região. 

Sendo inspirado na crise, o filme transporta em si uma inerente carga política. Mas é num momento particular deste volume, no episódio “Homens de Pau Feito”, que o tom de militância assume contornos caricaturais e o espectador é confrontado com uma passagem de pura sátira política. Um primeiro-ministro (Rogério Samora) e uma ministra das Finanças (Maria Rueff) subservientes aos representantes de uma troika autoritária e um feiticeiro com a cura para os males destes homens: um estimulante sexual que faz com que as medidas de austeridade, outrora tidas como indispensáveis, sejam relegadas para segundo plano e o mundo passe a girar em torno dos seus pénis. A passagem, que proporcionou muitas gargalhadas no São Jorge, joga com o humor e o absurdo, numa combinação que é uma espécie de remédio. O remédio que Gomes propõe para enfrentar a crise.

Mas o absurdo é tantas vezes real. Como a história do galo que foi julgado porque cantava demais e incomodava a vizinha. Aqui, o espectador encontra Resende e a sua população que, fazendo de si própria, apresenta as peripécias desta terra pacata: o galo, as eleições autárquicas, a história de uma rapariga-incendiária que deitava fogo à floresta por amor e por ciúme.

E depois os “magníficos”: testemunhos de quem se depara com um dos maiores flagelos causados pela crise - o desemprego. Desabafos nus, na primeira pessoa, e um choque de realidade.

O primeiro volume termina com banho no mar gelado para assinalar o início do ano. Um momento de catarse: é preciso fazer renascer a esperança.


Segundo volume: “O Desolado”


A atmosfera deste segundo volume é a mais obscura. Gomes resgata os fantasmas mais negros que vieram com a crise.

Começa com a crónica de fuga de Samuel Sem Tripas - baseada naquela que será a história mais mediática de todas, a do homicida “Manuel Palito”, interpretado por Chico Chapas, um passarinheiro que faz de si próprio no terceiro volume.

Os quadros selvagens de Figueira de Castelo Rodrigo, materializados em planos gerais que se estendem para lá do que a tela consegue alcançar, servem a fuga e o esconderijo de um homem, também ele selvagem, da terra e das montanhas. Aqui, a intensidade não está no rol de acontecimentos, mas nos silêncios, nas duras feições de um homem metido consigo mesmo e na sua capacidade de fusão com a própria natureza. E, claro, na forma como tudo se conclui: um homicida que se torna herói.

O que se segue é um “comic relief” . “As Lágrimas da Juíza” é um episódio onde muitas pequenas histórias são apresentadas de enfiada. Regadas com humor e uma certa dose de extravagância.

Por fim, uma das passagens mais marcantes do filme: a crise num bairro dos subúrbios. O isolamento e a melancolia que preenchem os blocos de apartamentos pequenos, escuros, desarrumados. A tralha espalhada pelas divisões e as nuvens de fumo de tabaco que transportam a tristeza do dia-a-dia. Dois casais, a mesma solidão e um cão que se torna num elo de ligação.

Se no primeiro volume Gomes dá conta da força dos "magníficos", aqui lembra os que cedem, incapazes, condenados, face à passagem do tempo.





Terceiro volume: "O Encantado"

 
O último volume distingue-se dos demais por apresentar dois tempos e dois universos muito diferentes: Xerazade em Bagdad e o outro lado do mundo.
 
Ao terceiro volume, Xerazade (Crista Alfaiate) surge, por fim, - até aqui o espectador só ouve as suas narrações – para dar conta das aventuras e dos mistérios de Bagdad. Xerazade quer conhecer o outro lado do mundo, quer ter novas histórias para contar, mas, ao mesmo tempo, não sabe que não poderá libertar-se. Nem de Bagdad, nem de si mesma e do seu destino.

No outro lado do mundo, os passarinheiros dos bairros de Chelas, Camarate e Boavista. E as horas e o empenho que depositam na preparação dos concursos de tentilhões. Mais a tensão dos concursos: os rostos sérios perante os cantos que provêm das gaiolas tapadas, o nervosismo que lhes consome o corpo, como se, para aqueles homens, nada mais importasse na vida que o canto do seu tentilhão.
 
Pelo meio, há imagens das forças de segurança a invadirem a escadaria da Assembleia da República. E outra concentração, desta vez com cravos - aqui, canta-se Portugal.




 
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