Os documentos altamente confidenciais do Pentágono divulgados online nas últimas semanas forneceram uma rara janela para como os EUA fazem espionagem aos aliados e inimigos, abalando profundamente as autoridades americanas, que temem que as revelações possam comprometer fontes confidenciais e comprometer importantes relações externas.
Alguns dos documentos, que as autoridades norte-americanas dizem ser autênticos, expõem a extensão da espionagem a aliados-chave como a Coreia do Sul, Israel ou Ucrânia.
Outros revelam o grau de penetração dos EUA no ministério da Defesa da Rússia e a organização mercenária russa Grupo Wagner, sobretudo através de comunicações intercetadas e pessoas, que agora podem ser descartadas ou ficar em perigo.
Outros ainda divulgam fraquezas importantes da artilharia ucraniana, da força aérea, da dimensão dos batalhões e da sua prontidão num momento crítico da guerra, enquanto as forças ucranianas se equipam para o lançamento de uma contraofensiva contra os russos - e no momento em que os EUA e a Ucrânia começaram a desenvolver uma relação de confiança mútua sobre a partilha de informação classificada.
A Ucrânia já alterou alguns dos seus planos militares por causa desta fuga, disse à CNN uma fonte próxima do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.
O Pentágono manteve um "esforço interagências" para avaliar o impacto da fuga, disse a subsecretária para a imprensa Sabrina Singh este domingo.
"O Departamento de Defesa continua a rever e avaliar a validade dos documentos fotografados que estão a circular nas redes sociais e aparentam conter material sensível e altamente confidencial", disse Singh em comunicado. "Um esforço interagências está a ser levado a cabo, focado na avaliação do impacto que estes documentos fotografados possam ter na segurança nacional dos EUA e nos nossos Aliados e parceiros."
Singh acrescentou que as autoridades norte-americanas conversaram com Aliados e parceiros durante o fim de semana sobre a fuga, e informaram "membros relevantes dos comités do congresso."
A fuga levou ainda o Pentágono a tomar medidas para apertar o fluxo de documentos tão sensíveis, que normalmente estão disponíveis em qualquer altura a centenas de pessoas do governo, dizem as autoridades.
A Joint Staff, uma equipa que reúne os membros mais séniores do departamento de Defesa que aconselham o presidente, está a examinar as suas listas de distribuição para ver quem recebe estes relatórios, disse um funcionário da Defesa. Muitos dos documentos tinham marcas que indicavam que tinham sido produzidos pela Joint Staff, conhecida como J2, e aparentam ser documentos de briefing.
Singh disse na sexta-feira que o departamento continua a rever o assunto e fez uma referência ao departamento de Justiça, que lançou uma investigação à origem desta fuga, confirmou a CNN pelo seu lado.
Diplomatas frustrados
Os documentos apareceram online há um mês na rede social Discord, segundo as imagens de ecrã destas publicações que foram revistas pela CNN. As fotos são documentos amarrotados sobre revistas e rodeados de outros objetos como sacos de abertura fácil e cola. É como se tivessem sido dobrados e metidos num bolso antes de serem colocados numa localização segura, disse uma fonte familiarizada com este tipo de documentos à CNN.
Uma porta-voz da Discord confirmou em comunicado, no domingo, que estão a cooperar com a polícia na investigação.
Se espiar é uma parte inevitável de como os Servicos Secretos dos EUA coligem informações globalmente, os diplomatas de alguns países mencionados disseram à CNN ser frustrante - e prejudicial para a reputação dos EUA - ver esta informação exposta publicamente.
Os aliados dos EUA estão a avaliar os danos, a trabalhar para determinar se algumas das suas fontes e métodos foram comprometidos com esta fuga.
"Nós esperamos que os EUA partilhem uma avaliação dos danos connosco nos próximos dias, mas não podemos esperar por ela. Agora mesmo, estamos a fazer a nossa", disse um funcionário de um país que faz parte do acordo Five Eyes de partilha de informação secreta com os EUA, e que inclui a Austrália, Canadá, Nova Zelândia e o Reino Unido.
"Estamos concentrados nestes documentos para perceber se alguma informação foi originada a partir da nossa coleção", disse o funcionário.
Outro funcionário de um país do Five Eyes expressou a sua preocupação sobre a fuga de informação sobre a guerra da Ucrânia que mutila o país no campo de batalha.
Este funcionário notou que era alarmante ver um dos documentos datado de fevereiro com o título "Russia-Ukraine: Battle for the Donbas Region Likely Heading for a Stalemate Throughout 2023" [Rússia-Ucrânia: Batalha pela região do Donbas está provavelmente a caminho de um impasse em 2023. O documento sublinha os desafios de avaliação "da resistência das operações da Ucrânia."
"Os ganhos para a Ucrânia serão difíceis de alcançar, mas não ajuda ter uma avaliação privada norte-americana a frisar o impasse de um ano revelada publicamente", disse o funcionário.
Espiar os amigos
A CNN reviu 53 documentos divulgados, todos eles parecendo ter sido produzidos entre meados de fevereiro e o início de março.
Um documento revela que os EUA têm espiado Zelensky. Isso não causa surpresa, disse uma fonte próxima de Zelensky, mas as autoridades ucranianas estão profundamente frustradas com esta fuga.
O relatório dos Serviços Secretos dos EUA, que tem proveniência em 'signals intelligence' [informação captada através de radar], diz que Zelensky, no final de fevereiro, "sugeriu atacar locais de implantação russos no oblast de Rostov na Rússia" usando aeronaves não tripuladas, uma vez que a Ucrânia não tem armas de longo alcance capaz de ir tão longe.
A 'signals intelligence' inclui comunicações intercetadas e é amplamente definida pela National Security Agency (Agência de Segurança Nacional) como "informação oriunda de sinais eletrónicos e sisitemas usados por alvos estrangeiros, como sistemas de comunicação e de armas."
Esta informação pode explicar os comentários públicos dos EUA sobre não querer fornecer à Ucrânia sistemas de mísseis de longo alcance por temer que Kiev os use para atacar a Rússia. Mas a Ucrânia prometeu não usar armas fornecidas pelos EUA para o fazer.
Outro relatório secreto diz que a China poderia usar os ataques ucranianos no interior da Rússia "como uma oportunidade para lançar a NATO como agressora e pode aumentar a sua ajuda à Rússia se considerar que os ataques foram significativos."
Mykhailo Podolyak, conselheiro do gabinete do presidente da Ucrânia, disse no Telegram, na sexta-feira, que acredita que os documentos que foram disseminados não são autênticos, têm "nada que ver com os planos reais da Ucrânia" e estão baseados numa grande quantidade de informação fictícia" disseminada pela Rússia.
No entanto, outro documento descreve, com incrível detalhe, uma conversa entre dois funcionários séniores da segurança nacional da Coreia do Sul sobre as preocupações do país por parte do conselho de segurança do país sobre um pedido dos EUA de munições.
Os funcionários preocupam-se que fornecer estas munições, que os EUA enviariam à Ucrânia, possa violar a política da Coreia do Sul de não fornecer ajuda letal a países em guerra. De acordo com o documento, um dos elementos sugere que uma forma de contornar a política sem a mudar seria vender a munição à Polónia.
O documento já fez estalar a polémica em Seul, com as autoridades sul-coreanas a dizer aos jornalistas que pretendem levantar o assunto em Washington, segundo o The York Times.
Outros países pretendem falar sobre o assunto em Washington, mas ainda não tiveram essas conversas, enquanto esperam para ver o que a administração Biden diz nos próximos dias sobre documentos secretos divulgados, disseam muitos diplomatas.
Um documento secreto sobre Israel, entretanto, desatou a polémica em Jerusalém. O relatório, produzido pela CIA e com origem em comunicações intercetadas, diz que a agência de serviços secretos de Israel, a Mossad, tem encorajado os protestos contra o novo governo - "incluindo várias pedidos de ação explícitos", diz. O gabinete do primeiro-ministro israelita respondeu em nome da Mossad no domingo de manhã, dizendo que o relatório é "mentiroso e sem qualquer fundamento."
"A Mossad e os seus funcionários sénior não encorajaram - nem encorajam - pessoas da agência a juntar-se a manifestações contra o governo, protestos políticos ou qualquer atividade política", diz o comunicado. "A Mossad e os seus funcionários não participaram em nenhum assunto das manifestações e estão dedicados ao valor do serviço ao Estado que tem guiado a Mossad desde a sua fundação."
Um outro documento classficado, também oriundo de comunicações intercetadas, oferece uma janela para como os EUA avaliam as políticas dos aliados - e como os EUA exercem a sua influência para os mudar.
No documento intitulado "Israel: Pathways to Providing Lethal Aid to Ukraine" [Israel: Caminhos para fornecer ajuda letal à Ucrânia" diz que Jerusalém "pode considerar fornecer ajuda letal sob pressão dos EUA ou perceção de degradação" na relação com a Rússia.
Outro documento revela o que os Estados Unidos pensam sobre as intenções de alguns países europeus de doar caças à Ucrânia, que pede os aviões há mais de um ano.
A 23 de fevereiro, diz o relatório, A Bulgária expressou a sua vontade de doar a sua frota de aviões MiG-29 à Ucrânia - um "desafio", avalia o relatório, porque deixará a Bulgária sem força aérea para cumprir as suas missões de policiamento até os F-16 produzidos nos EUA serem entregues, "o que só acontecerá daqui a um ano".
Espiar os inimigos
A fuga massiva também revela que a penetração dos EUA no ministério da Defesa da Rússia e dentro da organização mercenária Grupo Wagner vai mais longe do que era entendido anteriormente.
Muita da informação sobre a Rússia foi recolhida via comunicações intercetadas, aumentando as preocupações que os russos possam agora mudar o seu método de comunicação para melhor esconder os seus planos.
As fontes humanas também podem estar em risco. Mapas dos movimentos das tropas russas e capacidades incluídos no rol de documentos têm origem, em parte, em fontes humanas confidenciais. Avivam-se os medos entre as autoridades americanas de que estas fontes possam agora estar em perigo.
Os documentos mostram que os EUA têm conseguido intercetar os planos russos até à exata fábrica termoelétrica, estações elétricas, estradas e pontes que as forças russas planeiam atacar dentro da Ucrânia e quando.
Os EUA conseguiram também intercetar a estratégia da Rússia para combater tanques da NATO que deveriam entrar na Rússia no início de abril. O plano "destinado a estabelecer três zonas de fogo com base no intervalo - longo, médio e curto - com cada zona coberta por armas específicas e tipos de unidade", diz o relatório americano.
Destacando as preocupações dos EUA com o Grupo Wagner, que tem milhares de pessoas a operar na Ucrânia, os documentos debatem o renovado recrutamento de prisioneiros russos para combater na Ucrânia - sublinhando que "a continuada influência sobre Putin" dos seus líderes, segundo um relatório - e os planos para fortalecer a sua presença em África e no Haiti.
Os documentos são também uma janela para o número de baixas dos dois lados, números que são visivelmente difíceis de calcular com rigor e que os EUA se têm mostrado relutandos em partilhar publicamente em detalhe.
De acordo com um desses documentos, as forças russas sofreram entre 189.500 a 223 mil baixas desde fevereiro, incluindo 43 mil tropas mortas em combate. A Ucrânia, em contrapartida, sofreu entre 124.500 a 131 mil baixas, com 17.500 perdidas em combate, diz o relatório.
Os maus atores já estão a usar os documentos vazados para espalhar desinformação, dizem os analistas. O documento com o número de baixas, por exemplo, foi alterado nas últimas semanas para mais de metade dos números de mortes russas, antes de ser divulgado em canais de Telegram pró-russos.
Questionado sobre as imagens que circulam no Twitter e Telegram, o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov disse à CNN, na sexta-feira, que não têm "a mínima dúvida "sobre o envolvimento direto ou indireto dos EUA e da NATO no conflito entre a Rússia e a Ucrânia."
"O nível de envolvimento está a aumentar, gradualmente a aumentar", disse. "Mantemo-nos atentos ao processo. Claro que torna toda a história mais complicada, mas não pode influenciar o resultado desta operação especial."
Este artigo foi atualizado com informação adicional.
Sean Lyngaas, Alex Marquardt e Haley Britzky contribuíram para este texto.