“É inaceitável!” Embaixador chinês provoca fúria europeia - TVI

“É inaceitável!” Embaixador chinês provoca fúria europeia

  • CNN
  • Simone McCarthy
  • 24 abr 2023, 15:59
Lu Shaye, embaixador da China em França, em 2019 Foto Martin Bureau AFP via Getty Images

Embaixador chinês causa indignação europeia com sugestão de que antigos Estados soviéticos não existem

Os países europeus estão a exigir respostas de Pequim depois de o seu diplomata de topo em Paris ter questionado a soberania das antigas repúblicas soviéticas. Os seus comentários poderão minar os esforços da China para ser vista como um potencial mediador entre a Rússia e a Ucrânia.

As afirmações do embaixador da China em França, Lu Shaye, que durante uma entrevista televisiva disse que os países da ex-URSS não têm “estatuto efetivo no direito internacional”, causaram consternação diplomática, especialmente nos Estados Bálticos.

A Lituânia, Letónia e Estónia instaram representantes chineses a prestar esclarecimentos, segundo confirmou esta segunda-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros lituano, Gabrielius Landsbergis.

Vários representantes oficiais, incluindo da Ucrânia, Moldávia, França e União Europeia, também responderam com as suas próprias críticas aos comentários de Lu.

Lu fez estas observações em resposta a uma pergunta sobre se a Crimeia, que foi ilegalmente anexada pela Rússia em 2014, fazia parte da Ucrânia.

“Mesmo estes países ex-soviéticos não têm um estatuto efetivo no direito internacional, porque não houve um acordo internacional para materializar o seu estatuto de países soberanos”, disse Lu, depois de notar primeiro que a questão da Crimeia “depende de como o problema é percecionado”, uma vez que a região era “no princípio russa” e depois foi “oferecida à Ucrânia durante a era soviética”.

As observações pareceram negar a soberania de países que se tornaram Estados independentes e membros das Nações Unidas após a queda da União Soviética, em 1991 - e surgem no meio da invasão brutal da Ucrânia pela Rússia, sob a liderança de Vladimir Putin, cuja visão defende que o país deverá fazer parte da Rússia.

Até agora, a China recusou-se a condenar a invasão russa da Ucrânia ou a apelar à retirada das suas tropas, apelando em vez disso à contenção por “todas as partes” e acusando a NATO de alimentar o conflito. A China tem também continuado a aprofundar os laços diplomáticos e económicos com Moscovo.

Quando questionado sobre os comentários de Lu, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China disse numa conferência de imprensa regular esta segunda-feira que a China respeita o “estatuto de Estado soberano” dos países da ex-União Soviética.

“Depois da dissolução da União Soviética, a China foi um dos primeiros países a estabelecer laços diplomáticos com os países em questão... A China sempre aderiu aos princípios de solicitação mútua e igualdade no seu desenvolvimento de relações bilaterais amigáveis e de cooperação”, disse o porta-voz Mao Ning, sem abordar diretamente questões sobre os pontos de vista de Lu.

“Esperamos que a China explique a sua posição de forma inequívoca”

Entretanto, o chefe dos Negócios Estrangeiros da UE, Josep Borrell, disse que a China seria tema de debate durante uma reunião de ministros dos Negócios Estrangeiros na segunda-feira.

“Temos falado muito sobre a China nos últimos dias, mas teremos de continuar a debater a China, porque é uma das questões mais importantes para a nossa política externa”, disse Borrell.

Os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE irão também abordar a situação na Moldávia e na Geórgia, uma vez que estes países “veem a guerra [na Ucrânia] muito de perto, sentem a ameaça”, acrescentou.

A Moldova é um pequeno país na fronteira sudoeste da Ucrânia, que foi apanhado no fogo cruzado da invasão russa.

A Geórgia, que faz fronteira com a Rússia a leste, também tem estado sob os holofotes, depois de terem surgido protestos por causa de uma controversa lei sobre agentes estrangeiros, semelhante à adotada pelo Kremlin para reprimir a dissidência política.

“Para nós, a Geórgia é um país muito importante e não podemos esquecer que tem problemas de segurança específicos, uma vez que o seu território está parcialmente ocupado pela Rússia”, afirmou Borrell.

No domingo, Borrell afirmou que os comentários do embaixador chinês eram “inaceitáveis” e que “a UE apenas pode supor que estas declarações não representam a política oficial da China”.

A França também reagiu no domingo, com o seu Ministério dos Negócios Estrangeiros a declarar a sua “total solidariedade” com todos os países aliados afetados e a apelar à China para que esclareça se estes comentários refletem a sua posição, de acordo com a Reuters.

A Alemanha disse que espera que a China explique a sua posição sobre a soberania dos antigos Estados soviéticos, dizendo que “tomou nota das declarações do embaixador chinês na televisão francesa com grande espanto, especialmente porque as declarações não estão em linha com a posição chinesa conhecida até agora”.

“Claro que esperamos que a China explique inequivocamente a sua posição”, disse na segunda-feira o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, Christian Wagner.

Como a Federação Russa e os outros Estados que emergiram da dissolução da União Soviética se reconheceram mutuamente como Estados soberanos dentro das suas fronteiras, “a soberania e integridade territorial destes Estados é inviolável”, acrescentou Wagner.

Vários líderes de antigos Estados soviéticos, incluindo a Ucrânia, reagiram rapidamente após a entrevista, que foi transmitida na sexta-feira na estação francesa LCI.

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Letónia, Edgars Rinkevics, apelou a uma “explicação do lado chinês e a uma completa retratação desta declaração” numa publicação no Twitter no sábado. Rinkevics comprometeu-se a levantar a questão durante a reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE na segunda-feira, onde se espera que as relações com a China sejam discutidas.

“Estamos surpreendidos com as declarações chinesas (do embaixador) que questionam a soberania dos países que declararam a independência em 91. O respeito mútuo & integridade (territorial) têm sido fundamentais para os laços Moldova-China”, disse o Ministério moldavo na sua conta oficial no Twitter.

“As nossas expectativas são de que estas declarações não representem a política oficial da China”.

“É estranho ouvir uma versão absurda da 'história da Crimeia' de um representante de um país que é escrupuloso acerca dos seus mil anos de história”, escreveu também no Twitter Mykhailo Podolyak, conselheiro da Administração Presidencial da Ucrânia.

“Se queres ser um ator político importante, não papagueies a propaganda de forasteiros russos”, acrescentou.

Os laços europeus da China

Esta não é a primeira vez que Lu - uma voz proeminente entre os chamados diplomatas agressivos do “guerreiro-lobo” da China - suscita controvérsia pelas suas opiniões.

“Ele tem sido um conhecido provocador”, disse Jean-Pierre Cabestan, professor de Ciência Política na Universidade Baptista de Hong Kong.

“Mas ele é um diplomata, representa o seu governo, pelo que isso de alguma forma reflete o pensamento na China sobre o assunto", disse ele, acrescentando, contudo, que este “não é o momento para a China pôr em risco a sua relação” com França.

Os comentários colocam Pequim sob os holofotes num momento particularmente sensível para a sua diplomacia europeia.

Os laços azedaram quando a Europa observou com inquietação o estreitamento do relacionamento da China com a Rússia e sua recusa em condenar a invasão de Putin.

Nos últimos meses, Pequim tem procurado corrigir a sua imagem, destacando a sua declarada neutralidade no conflito e o seu desejo de desempenhar um “papel construtivo”no diálogo e na negociação, alimentando ainda mais o debate nas capitais europeias sobre como calibrar a sua relação com a China, que é um parceiro económico chave.

Esse debate intensificou-se este mês, depois de uma visita a Pequim do Presidente francês, Emmanuel Macron, que assinou uma série de acordos de cooperação com a China durante uma viagem que ele enquadrou como sendo uma oportunidade para começar a trabalhar com Pequim para promover a paz na Ucrânia.

Xi Jinping e Emmanuel Macron no jardim da residência do Governor de Guangdong, a 7 de abril 2023. Foto Jacques Witt _ Pool AFP via Getty Images

Entre os que criticam tal abordagem na Europa estão vozes nos ex-estados soviéticos, onde muitos se lembram de estar sob o regime autoritário comunista.

“"Se alguém ainda se pergunta por que razão os Estados Bálticos não confiam na China para 'intermediar a paz na Ucrânia', eis um embaixador chinês a defender que a Crimeia é russa e que as fronteiras dos nossos países não têm base legal”, escreveu o ministro dos Negócios Estrangeiros lituano, Landsbergis, no Twitter no sábado, a seguir à entrevista de Lu.

Moritz Rudolf, investigador no Centro Paul Tsai China da Faculdade de Direito de Yale, nos EUA, disse que a China tinha sido “cada vez mais bem-sucedida em ser vista como uma potência responsável que poderá desempenhar um papel construtivo num processo de paz na Ucrânia”.

“Resta saber se a liderança em Pequim se apercebe do quanto essas palavras podem ser prejudiciais para as suas ambições na Europa, se o Ministério dos Negócios Estrangeiros não distanciar a (República Popular da China) das palavras do Embaixador Lu", afirmou.

E acrescentou que a “posição e prática oficiais da China” contradizem os comentários de Lu, inclusive porque a China não tinha reconhecido a soberania da Rússia sobre a Crimeia ou qualquer território anexado desde 2014.

Outras vozes sugerem que as observações de Lu podem também lançar luz sobre as verdadeiras prioridades diplomáticas de Pequim.

Para a Rússia, desistir do controlo da Crimeia é amplamente visto como um obstáculo em qualquer acordo de paz em potencial na Ucrânia. Isto significa que Pequim pode ter dificuldade em dar uma resposta direta a esta questão, segundo explica Yun Sun, diretor do Programa China no Stimson Center, sediado em Washington.

“A questão é impossível de responder para a China. A relação da China com a Rússia é de onde vem a sua influência”, disse ela, acrescentando que isso não significava que Lu poderia ter dado uma “resposta melhor”.

“Entre sabotar a relação da China com a Rússia e enfurecer a Europa, (Lu) escolheu a última”.

 

Radina Gigova, Inke Kappeler, Xiaofei Xu e Wayne Chang, da CNN, contribuíram para este artigo.

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