Crucifixos: «Estão a criar um problema onde ele não existe» - TVI

Crucifixos: «Estão a criar um problema onde ele não existe»

Mário Soares

ENTREVISTA: Mário Soares recorda que defendeu a Igreja do anticlericalismo no pós-25 de Abril e que a «questão religiosa é consensual» no país. Reconhece que, se vencer, vai viajar menos, e que Belém deve dar o exemplo quando se fala em contenção orçamental

Pensa vetar nomeações políticas?

Esse é um caminho para criar problemas com o Governo. Mas exercerei uma magistratura de influência junto do primeiro-ministro. Não quer dizer que consiga: tentei muitas vezes, com delicadeza, avisar o primeiro-ministro Cavaco Silva. Ter tido esta experiência é uma mais-valia. De todos os candidatos, sou o único que a tem. E a maioria dos portugueses considera que foi uma boa experiência.

Sobretudo no segundo mandato...

Na primeira eleição, no dia em que ganhei à tangente, com a Praça da Saldanha cheia, estendi a mão ao outro Portugal que não votou em mim. Disse: serei o Presidente de todos os portugueses e não apenas daqueles que me elegeram. Foi a primeira coisa que fiz no discurso improvisado de vitória.

O Orçamento para a Presidência da República é de 30 milhões de euros. Acha que a contenção deve chegar a Belém?

O Presidente da República deve dar o exemplo.

Vamos ter um Presidente menos viajante?

Sim, mas o problema não é o valor da viagem do Presidente. São as grandes comitivas e os muitos assessores que o acompanham.

A contenção já chegou aos cargos políticos. Deve chegar também aos cargos públicos empresariais de nomeação política?

Nas empresas em que o Estado tem participação, há ordenados e reformas que ultrapassam em muito o valor que, por exemplo, o Presidente da República aufere. E não me parece justo. Contudo, há uma questão a ponderar: se não se paga bem, os bons profissionais não estão dispostos a abandonar o privado.

Para as pessoas que andam de transportes públicos, que olham para os preços nos supermercados e fazem contas ao dinheiro, o que é que a sua candidatura lhes pode trazer?

Podem ter confiança que a orientação geral do país, tendo um Presidente como eu, vai sempre no sentido da justiça social e da preocupação em ajudar. Porque essa é a minha preocupação. Mais do que saber se o défice aumenta ou diminui um ponto. Isso é importante do ponto de vista financeiro. Eu até fui, talvez, um dos únicos políticos portugueses, com Ernâni Lopes e Vítor Constâncio, que reduziram o défice.

Mas também saberá apelar a um espírito de sacrifício?

A minha passagem pela Presidência da República coincidiu com um período de «vacas gordas», em que houve grandes despesas públicas e aumento do défice. Mas a população teve melhorias significativas, quer no Governo de Cavaco Silva, quer no Governo de Guterres, na sua primeira fase. Isso depois pagou-se.

Estamos a pagar agora?

Em parte, sim. Estamos numa altura depressiva, não só em Portugal, mas na Europa. Mais do que depressiva, hesitante quanto ao rumo a seguir. E por isso também é preciso ter uma visão europeia e um conhecimento muito claro do que se vai passar na Europa.

Como comenta a polémica da retirada dos crucifixos das escolas, que se limita ao estrito cumprimento da lei?

Só serve para arranjar um pequeno conflito. A Constituição é clara. Nós somos um Estado laico, as escolas públicas não devem ter religião. A própria Igreja reconhece o laicismo do Estado, desde o Concílio Vaticano II. Quando a Igreja se confunde com o Estado, cai-se numa teocracia, que é o que tanto criticamos nos muçulmanos. Nós fizemos o caminho de separar a Igreja do Estado. Foi uma lei que começou na I República. Foi muito discutida. Nem Salazar lhe tocou... Esta é hoje uma questão consensual na sociedade portuguesa. O crucifixo tem que ser respeitado, mas nos lugares onde deve estar. Se não há nenhuma questão religiosa em Portugal, por que é que a vamos criar? Defendi a Igreja do anticlericalismo que existia no 25 de Abril. Cheguei a organizar (eu que sou laico e agnóstico) uma manifestação para defender o Patriarcado quando a UDP o queria atacar.
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