“Na altura em que a PJ travou um ataque à Faculdade de Ciências alguém perguntou se os portugueses deviam ter medo de brancos ou cristãos?" - TVI

“Na altura em que a PJ travou um ataque à Faculdade de Ciências alguém perguntou se os portugueses deviam ter medo de brancos ou cristãos?"

Marcelo já disse: é um caso isolado. António Costa disse também: é um caso isolado. Ativistas e entidades que trabalham no acolhimento de refugiados dizem igualmente: é um caso isolado. E é preciso continuar a receber, é preciso receber melhor. Porque "é isso que nos caracteriza" como povo. O caso de Abdul Bashir é um caso isolado numa comunidade que "tem feito tudo para se integrar". E atenção à saúde mental: "É absolutamente essencial"

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Esperam meses para ter aulas de português, têm dificuldades no acesso ao emprego ou à educação, nem sempre são acompanhados devidamente ao nível da saúde mental e enfrentam problemas sociais - como a habitação, por exemplo. Abdul Bashir é um dos cerca de 500 refugiados que pediram asilo a Portugal por causa da situação no Afeganistão. É também o autor do ataque que fez dois mortos no Centro Ismaili de Lisboa.

O diretor da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), André Costa Jorge, explica à CNN Portugal que em mais de dez anos foram 300 os afegãos acolhidos pela organização, garantindo que nunca se deparou com “situações de violência ou minimamente semelhantes” à ocorrida na capital portuguesa. André Costa Jorge confessa-se preocupado com a possibilidade de a sociedade portuguesa passar a olhar para os refugiados, nomeadamente os afegãos, de outra forma, destacando que também faz parte da comunidade que acolhe tratar e acompanhar quem chega de situações delicadas.

“Estou preocupado com todos os refugiados, em concreto com os afegãos, que aqui também são vítimas”, afirma, dizendo que a maioria dos casos são de “cidadãos exemplares” que têm feito “tudo para se integrarem”, desde arranjar trabalho a incluírem-se nas suas comunidades. Muitos deles, acrescenta André Costa Jorge, até se “sentem portugueses”, uma vez que foi aqui que encontraram o que mais procuravam desde que deixaram a sua pátria: a segurança.

Agora, diz André Costa Jorge, muitas destas pessoas podem ser olhadas como “responsáveis” de um crime pelo qual não tiveram nenhuma culpa. O Governo e o Presidente da República já enfatizaram que este é um caso isolado.

A alta-comissária para as Migrações, Sónia Pereira, destaca as intervenções de António Costa e de Marcelo Rebelo de Sousa como importantes para reiterar que se tratou mesmo de um caso isolado, afirmando que "não há nenhuma forma de retirar uma conclusão de um ato isolado em relação a uma comunidade". A partir daqui, diz Sónia Pereira, "o foco deve estar na solidariedade da sociedade portuguesa, recordando o movimento ocorrido na altura da evacuação do Afeganistão", em agosto de 2021."É esse movimento que acredito que vai imperar - e é isso que nos carateriza."

Para o ativista português Miguel Duarte, é “fundamental tratar esta pessoa como um indivíduo e não um grupo”. O ativista português, que se tornou um dos rostos da ajuda aos refugiados na Europa depois de ter estado presente no salvamento de centenas de pessoas no Mar Mediterrâneo, vinca que “não há absolutamente nada que possa indicar seja o que for de razões para o ataque”, respondendo com uma questão: “Na altura em que a Polícia Judiciária travou um ataque à Faculdade de Ciências alguém perguntou se os portugueses deviam ter medo de brancos ou cristãos?”

A saúde mental: absolutamente essencial

Muitos refugiados em Portugal - não apenas afegãos mas também ucranianos, sírios ou de outras nacionalidades - esperam para que lhes seja atribuída a oportunidade de começarem por uma das bases do convívio, a língua. Miguel Duarte fala em casos em que se espera entre seis meses a um ano e garante que existem assimetrias geográficas nos problemas - mas sublinha que a dificuldade de acesso a aulas não é apenas de Bragança ou Évora, acontece também nas maiores cidades, como Lisboa ou Porto, onde existe uma “falta de acesso brutal a aulas”. O problema, diz, até já foi levado aos decisores políticos, a quem pede que “ouçam as associações”, que também pretendem fazer-se ouvir sobre os outros problemas que afetam quem chega para começar de novo.

O ativista até fala em “coisas que estamos melhor” no acolhimento de refugiados, mas aponta muitas outras que continuam a faltar, saltando à vista uma delas: “a saúde mental, que é uma questão absolutamente fundamental”. A saúde mental é, de resto, um dos pontos que devem estar em causa no caso de Abdul Bashir: lidaria com problemas psicológicos (fez mesmo um alerta nas redes sociais), sendo que a mulher morreu já na Europa, quando estava num campo de refugiados com a família, na Grécia. Susana Gouveia, psicóloga da Cruz Vermelha Portuguesa, lembra que esse percurso, muitas vezes feito de barco e com a morte à espreita, é "complexo". Não apenas física mas também psicologicamente. E o percurso não se apaga, vem na bagagem: "Apesar de muitas vezes serem capazes de se reconstruir em Portugal ou noutros países, há situações menos boas, até potencialmente traumáticas", afirma a psicóloga, que lida de perto com casos deste género.

É a ela e às suas colegas que chegam muitos dos refugiados que passam por esse percurso. Essas pessoas devem ser encaminhadas pelo Estado mas a especialista lembra que só continua a receber o apoio psicológico quem quer. "O acompanhamento que a Cruz Vermelha dá só existe durante o tempo que quem está a ser ajudado quer", ressalva, dizendo que é preciso "fazer sentir essa necessidade" à pessoa para que se continue o aconselhamento.

Feito esse rastreio há sinais aos quais se deve estar atento e que podem justificar o encaminhamento do caso para outras autoridades, seja o INEM, seja mesmo a polícia. Ainda que não falando do caso em concreto, Susana Gouveia afirma que "estas circunstâncias não têm nada de simples". Neste ponto, conclui Miguel Duarte, o Estado tem responsabilidade de garantir que os refugiados são acolhidos de forma digna, mas nem sempre isso acontece. “Nem toda a gente tem os acessos necessários e é preciso que haja uma maior integração, mas o Estado terceiriza essa responsabilidade. É do interesse de toda a gente [que os refugiados sejam bem acolhidos]. Também são direitos dos portugueses, acaba por prejudicar toda a gente.”

O aproveitamento político

Um dos primeiros partidos a reagir ao ataque ao Centro Ismaili foi o Chega, que defende um maior controlo das fronteiras. Primeiro no Twitter, e depois na Assembleia da República, André Ventura culpou uma "política de portas abertas sem qualquer controlo". Um discurso semelhante ao que se vê em Itália com a agora primeira-ministra Georgia Meloni, em França com Marine Le Pen ou em Espanha com Santiago Abascal.

Para André Costa Jorge, estes políticos "anseiam para que aconteça este tipo de incidentes para legitimarem os seus discursos xenófobos e desligados da realidade". O diretor da PAR sublinha que o objetivo passa por "tirar partido político do medo e da ignorância das pessoas que conhecem pouco esta realidade", reiterando que este será um "ato isolado" do qual "não pode haver uma extrapolação" para colocar em causa uma política de acolhimento de refugiados. "Há cada vez mais refugiados que tendem a permanecer em Portugal, até porque há mais comunidade. Por parte do Estado e das instituições também há mais preparação do que antes."

O Governo e o Presidente da República já sublinharam que este caso no Centro Ismaili é um ato isolado.Para Miguel Duarte, essa é a postura correta, não cedendo às "narrativas falaciosas da extrema-direita". "É preciso tratar isto como um acontecimento horrível mas, acima de tudo, não ligar e não dar plataforma a políticos que querem fazer uma utilização disto para fins políticos."

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