Podemos teclar furiosamente no computador, deslizar os dedos pelos ecrãs dos smartphones ou usar a tecnologia touch screen, mas alguma coisa se compara a pegar num papel e numa caneta e escrever à mão? Com a massificação das novas tecnologias, a escrita à mão é cada vez menos utilizada. No mundo em que vivemos, percebemos que as pessoas escrevem sobretudo em teclados. De um modo geral, só nas escolas a escrita à mão ainda é utilizada no dia a dia, dependendo do grau de ensino.
A questão é: será que nos devemos preocupar? Será que devemos aceitar que a escrita à mão seja uma ferramenta que o tempo vai minimizando ou será que ainda detém um valor que não pode ser ultrapassado pelo da palavra dactilografada?
Inventada pelos sumérios, na antiga Mesopotâmia, a escrita à mão é tão antiga que nem nos questionamos sobre ela. Com mais de 3500 anos, foi testemunha de acordos internacionais, de declarações de amor ou de obras literárias que vivem nas estantes até aos dias de hoje.
A caligrafia é o que regista a nossa individualidade. Envolve-nos numa relação com a palavra escrita que é sensorial, imediata e particular. Como cada pessoa tem a sua escrita única, ela permite identificar a autenticidade de documentos e assinaturas, assim como criar ligações emocionais mais fortes entre as pessoas.
Não fará sentido abdicar da clareza e da autoridade da impressão, que está acessível a toda a gente com um teclado, mas diminuir o papel da escrita à mão não será diminuir, de uma forma pequena, mas real, a própria individualidade?
O Dia Mundial da Escrita à Mão, que se assinala esta terça-feira, teve origem nos Estados Unidos da América e pretende não deixar esquecer uma arte milenar.
Neste dia as pessoas são encorajadas a deixar os teclados de lado e a escrever à mão, em papel, e, se necessário, a fazer a digitalização e o upload do documento escrito à mão. Pode ser, por exemplo, uma carta ou um poema. Neste dia também pode decidir fazer um curso de caligrafia.
Para já, faça a experiência. Pare durante três minutos o que estiver a fazer. Pegue numa caneta, ou num lápis, e num papel. Escreva qualquer coisa. Sentiu alguma dificuldade, como a mão presa e a letra mais tremida, ou a mão desfila bem pelo papel? Se teve algum problema em escrever, pense um pouco: não estará a deixar para trás um hábito tão primário, mas ainda assim, tão importante na vida?
“A caligrafia de Fernando Pessoa é também um legado que ele nos deixou”
Imagina Fernando Pessoa com um tablet na mão ou um computador portátil, sentado numa das mesas da esplanada do café a Brasileira, no Chiado, em Lisboa? Fernando Pessoa a tomar notas no tablet das ideias que lhe ocorrem para poemas ou mesmo escrever o poema todo? Tivesse o escritor vivido no século XXI e a ideia talvez não fosse tão descabida quanto isso.
O primeiro livro escrito à máquina foi o clássico “Tom Sawyer” do norte-americano Mark Twain, publicado em 1876. Desde essa data, não deixaram de surgir grandes escritores por causa de uma mudança tecnológica. Lembremos as imagens de José Saramago, no computador a escrever a “Viagem do Elefante”, no documentário “José e Pilar”, ou o caso de Vasco Graça Moura que, desde que surgiu o computador, afirmou ter começado a escrever tudo aí.
"Quem ama a escrita, escreve à mão", afirmou um dia Agustina Bessa-Luís, que sempre confessou escrever à mão. Mas não é a única. Outros escritores continuam a escrever os livros à mão. De que forma os teclados influenciam o processo criativo dos escritores portugueses?
Francisco José Viegas, escritor, jornalista e ex-secretário de Estado da Cultura, conta à TVI24 que escreve tudo à mão, quer poesia, quer ficção. Depois passa para o computador e aí trabalha o texto. Todos os casos de polícia do inspetor Jaime Ramos, personagem central da obra do escritor, foram escritos à mão.
Escrever à mão é uma coisa mais pessoal, obriga-nos a pensar, a desenhar as letras. Abdicar da ligação entre mão e escrita é perder uma intimidade muito grande. Uma pessoa quando escreve à mão é muito mais cuidadosa, não dá tantos erros ortográficos. Quando está a escrever no computador liga muito menos: não põe acentos, falha a pontuação, tanto escreve em maiúsculas como minúsculas, tem menos cuidado”.
Desde o primeiro livro, o método de escrita de Francisco José Viegas tem sido o mesmo.
Há um prazer muito maior em escrever à mão. Eu fui educado no mundo da caligrafia. Uma boa caligrafia é também um respeito pelos outros. O prazer de escolher o papel, a caneta (entre outras, tenho uma velha caneta de tinta permanente). Também tenho uma bela coleção de lápis."
A mitologia dos “blocos de notas, dos caderninhos e do café” é algo que se lhe aplica “completamente”. Francisco José Viegas sai de casa, senta-se numa esplanada com blocos e cadernos e fica a escrever.
“Gosto de escrever nas esplanadas. Dentro do café não, porque não se pode fumar. Tenho a minha coleção de cadernos. Sou fanático dos cadernos Emílio Braga”.
Depois de acabado o primeiro rascunho, transcreve o texto para o computador e aí trabalha-o.
Ao escrever à mão, o escritor diz que é obrigado a uma “certa lentidão” para tornar a escrita mais inteligível, o que por sua vez faz com que pense melhor. Francisco José Viegas gosta de uma caligrafia bem delineada, da letra bem desenhada em tinta permanente. Ver uma história crescer numa dimensão diferente da que o livro vai ser impresso é uma vantagem, dá “uma certa inocência”, explica. E é com essa mesma inocência que já o guiou por dezenas de manuscritos, que não se vê a abandonar o movimento da sua mão, da sua força criadora, para um teclado.
Já para Alice Vieira, escritora e jornalista profissional, nada é mais eficaz do que um teclado. Desde os 18 anos, quando entrou para o jornal “Diário de Lisboa” (1961), que a autora só escreve em teclado.
Antes disso, já escrevia numa máquina antiga, com um teclado só em português HCESAR. A única coisa que escrevia à mão era quando ia fazer entrevistas e precisava de tomar notas. Até hoje, não consigo escrever nada profissionalmente (livros e artigos) sem ser em teclado. Quando uso uma caneta, não me vem ideia nenhuma à cabeça”, afirma Alice Vieira à TVI24.
A escritora revela que tem uma coleção enorme de canetas, mas servem-lhe para muito pouco: “Não consigo escrever nada à mão. Sempre escrevi em teclado”, reitera.
Ainda assim, a mitologia do bloco de notas e do café ainda existe: “Saio de manhã para uma esplanada, levo cadernos para tomar nota de uma ideia ou de uma palavra e tenho também uma agenda em papel, mas mais nada. Todos os livros são escritos diretamente no teclado, o que faz com que tenha uma caligrafia horrível porque, de facto, uso-a muito pouco. Não sou capaz de escrever seja o que for sem ser em teclado. À mão só escrevo postais. Mais nada.”
Para Mário Zambujal, a escrita à mão é o princípio de tudo
Quando era menino aprendi a escrever à mão e mantive esse mecanismo, esse automatismo, entre o cérebro e a mão. Tudo o que escrevo, livros, crónicas, é sempre à mão (e depois alguém tem a bondade de me meter no século XXI e passar a escrita a computador). Para mim, é uma coisa tão natural como os gestos de infância. Tenho dificuldade, às vezes, em decifrar o que escrevo por causa de toda a minha rapidez: a naturalidade, o automatismo, com que o meu braço e a minha mão acompanham o impulso mental, os recados que tenho na cabeça”, revela à TVI24 o jornalista e escritor.
“Toda a minha rapidez tem a ver com o facto de me surgir automaticamente o desenho, em letras, dos meus próprios pensamentos. Quando escrevo à mão, não há interrupção, não tenho de pensar onde está o H, escrevo à velocidade do próprio pensamento. Escrevo rapidamente em letras maiúsculas porque têm maior facilidade de leitura. É uma coisa instintiva, automática. Este braço cresceu a desenhar letras”, explica.
Mário Zambujal publicou vários livros, entre os quais: “Crónica dos Bons Malandros”, em 1980, que teve grande sucesso e deu origem a uma longa-metragem de Fernando Lopes; “Histórias do Fim da Rua”, em 1983; e “À Noite Logo se Vê”, em 1986.
O escritor afirma ter uma “réstia de pena” que os autores modernos “não nos deixem, como os grandes autores, a sua caligrafia”, que, depois das impressões digitais, eram a segunda nota de identificação.
A caligrafia tem uma base tão grande de identificação da pessoa, ao passo que no computador é indiferente quem é que está a teclar lá, a qualidade da escrita é que é diferente. A caligrafia de Fernando Pessoa é também um legado que ele nos deixou – é certo que no século XIX não havia computadores nem máquinas de escrever - enquanto que, no autor moderno, o original está num computador.”
Escrever à mão desenvolve o cérebro
Os primeiros “escritos” do homem foram nas paredes das cavernas com a própria mão. Mais tarde, surgiram os pergaminhos, as penas e a tinta. Depois, o papel e a caneta. E agora, os teclados e os ecrãs. O que muda no cérebro quando se escreve no computador? Diversos estudos científicos apontam diferenças em relação à escrita no papel, considerada fundamental para decorar conceitos, aprender uma língua ou manter o cérebro ativo.
Graças a testes e imagens recolhidas através de ressonâncias magnéticas, investigadores da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, concluíram que escrever à mão traz muitas vantagens, uma vez que são estimuladas e ativadas mais conexões cerebrais, o que favorece a aprendizagem de fórmulas e também de símbolos.
Quando escrevemos à mão, a palavra que imprimimos no papel está memorizada como um todo, como símbolos, sai como uma unidade única de significação", explica à TVI24 o neurologista Alexandre Castro Caldas, diretor do Instituto de Ciências da Saúde, da Universidade Católica Portuguesa.
Quando utilizamos o computador, temos de escolher o grafema. O cérebro processa letra a letra, com base numa memória visual dos caracteres que se quer teclar. Na base está o ato de soletrar, um processo mais lento."
Para o autor do livro “Viagem ao Cérebro e a Algumas das suas Competências”, é preciso desenvolver o processo da escrita à mão quando se é criança, porque ele favorece a elasticidade do cérebro, o que vai permitir desenvolver outras capacidades cognitivas como decorar ou exprimir pensamentos de forma mais clara.
Margarida Alves Martins, professora do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), em Lisboa, cita um estudo na área da neurolinguística, publicado na revista Science, para realçar à TVI24 a importância que as habilidades motoras têm na escrita manual no decurso do ensino da linguagem escrita.
“A memorização das correspondências grafo-fonéticas e da própria ortografia da palavra parece ser facilitada em termos de ligações neuronais pelos movimentos motores associados à escrita manual. Basta pensarmos que quando hesitamos em relação à grafia de uma palavra recorremos à escrita das palavras para tirar dúvidas. Além disso, aspetos relacionados com a atenção e a concentração parecem igualmente beneficiados com a escrita manual”, sublinha.
Escrever à mão envolve vários sentidos: o cérebro recebe um feedback das ações motoras, juntamente com a sensação do toque do lápis e do papel, que exige uma maior concentração e permite uma mais demorada, ainda que curtíssima, elaboração mental para transformar ideias e palavras em linguagem escrita.
A escrita à mão é uma competência que se consegue graças à ligação do cérebro com a mão dominante e como consequência de um ato consciente e voluntário. Nos teclados, as letras para formar palavras já lá estão, e apenas precisam que os dedos as construam.
Se a investigação revela que diferentes partes do cérebro são ativadas quando a visão reconhece uma letra caligrafada ou uma datilografada, que importância devem assumir, na aprendizagem das crianças, a escrita manuscrita e o processamento de texto no computador?
Aprender a escrever à mão na era do teclado
A tecnologia coloca-nos a todos num mundo de muitas possibilidades, que facilita o dia a dia. No caso específico das crianças, mesmo com a tecnologia disponível na sala de aula, a prática de escrever à mão é importante e deve ser incentivada nos alunos desde a fase de alfabetização. Escrever à mão, o treino da caligrafia, uns dos objetivos principais dos dois primeiros anos escolares de qualquer criança, ainda é encarado como algo central pelos professores do 1º Ciclo, pelo menos em Portugal.
Para mim, não existe a ‘antiquada’ caligrafia. Desde muito cedo, que as crianças que aprendem a escrever têm contacto com a dita escrita à máquina, mas a escrita à mão continua a ser uma competência básica. Quando as crianças, que agora a aprendem a escrever no 1º Ciclo, chegarem ao ensino secundário, à universidade e à atividade profissional, vão ter que assinar. No estádio mais avançado da escolaridade (3º Ciclo e Secundário), os alunos entregam os trabalhos por email, mas os professores dão muita importância à caligrafia e à apresentação dos cadernos, que são avaliados”, afirma à TVI24 Alexandra Cleto, professora do 1º Ciclo.
A dar aulas no Agrupamento de Escolas do Alto dos Moinhos, na Terrugem, em Sintra, Alexandra Cleto explica que, para a maioria dos professores, o ensino da caligrafia continua a ser relevante e que a tarefa de ajudar crianças pequenas a desenvolver as habilidades que precisam para realizar "tarefas complexas" que exigem coordenação de processos cognitivos, motores e neuromusculares deve começar logo nos anos pré-escolares.
“A escrita vem em simultâneo com a leitura. A escrita acaba por ser um retrato do que as crianças aprendem na leitura. É mais fácil aprender a ler do que a escrever. Uma escrita à mão, mais desenhada, implica um nível cognitivo mais avançado. Já no pré-escolar, existem um conjunto de regras que ajudam a preparar a competência da escrita: adquirir a noção de espaço, do que é a direita e a esquerda, funções motoras/mecanismos para desenvolver uma caligrafia normal, como a pressão que é preciso fazer da caneta na folha.”
No 1º Ciclo, os miúdos adoram desenhar as letras corretamente, escrever direito em cima da linha. Eles gostam imenso de aprender. Sem noção nenhuma de toda a complexidade do processo da escrita, dos mecanismos que envolve, eles escrevem muito, muito, bem. Os miúdos adoram. A escrita, cognitivamente, desenvolve muito os miúdos.”
O suporte principal na sala de aula nas escolas primárias portuguesas ainda é o caderno e o papel. Alexandra Cleto defende que, a par do uso do quadro interativo e do computador, a escrita manuscrita, a caligrafia, tem de ser ensinada porque “os miúdos têm de aprender a assinar, a escrever recados”.
“Quando ensinamos uma letra à criança, ensinamos quatro símbolos: maiúscula escrita à mão, maiúscula escrita à máquina, minúscula escrita à mão e minúscula escrita à máquina.”
A prática da escrita manual ainda é a técnica mais utilizada no ensino, mas as salas de aula mudaram e a forma de ensinar também. Não só em Portugal, como no mundo inteiro, escrever à mão os trabalhos da escola está cada vez mais em desuso e os cadernos são cada vez mais substituídos pelos computadores. Alexandra Cleto não se manifesta, no entanto, contra a utilização do computador.
Na sala de aula, existe um computador e um teclado, onde cada um se dirige por sua vez, e um quadro interativo em que toda a sala está a ver. Os miúdos estão muito habituados a que se utilize o computador para tudo. A par da caligrafia, da escrita à mão, tem de aparecer sempre a do computador (porque hoje em dia aparece em todo o lado, como por exemplo nas legendas do cinema). É impossível desassociar a escrita manuscrita da escrita do computador”, defende.
Desde setembro de 2016, que os alunos do ensino primário na Finlândia deixaram de ser obrigados a aprender caligrafia (embora os professores ainda tenham a liberdade de a ensinar se assim o entenderem). Em vez disso, e a pensar no estilo de vida moderno, aprendem a datilografar. A Finlândia não está sozinha na abolição da aprendizagem da caligrafia do currículo escolar. O debate também se faz sentir nos Estados Unidos, mas será esta uma mudança positiva ou negativa?
Para Alexandra Cleto, trata-se mais de uma questão emocional do que prática.
“Acho que a escrita à mão devia ser preservada. Se a par do computador, for pedida uma folha escrita à mão, tudo bem. Caso contrário, era quase como não aprender a desenhar e a pintar”, visto que está cientificamente comprovado que a aprendizagem está diretamente relacionada com as atividades motoras, seja escrever, pintar, colorir, desenhar e até fazer trabalhos manuais. Todos esses exercícios são fundamentais para treinar as redes de neurónios do cérebro.
Para a professora do 1º Ciclo, tudo pode funcionar com as novas tecnologias, mas desde que não se percam todas as competências de escrita e de leitura.
Do ponto de vista cognitivo, não vai afetar aprender a escrever as letras só para usar máquinas. Do ponto de vista gramatical e a da ortografia, pode ser redutor, pode retirar alguma competência ao nível da escrita e da leitura (porque o computador corrige os erros e os acentos e os alunos deixam de ser capazes de se aperceber deles sem o corretor ortográfico).”
Para a professora, não faz sentido escrever só em tablets: “É uma competência básica saber escrever à mão. Acho bonito os cadernos todos arranjados, bem ilustrados. Ver um sublinhado e saber onde está o erro antes de clicar e o computador dizer qual é.”
Consegue distinguir os alunos pela caligrafia? “Completamente. Estou tão habituada a seguir o desenvolvimento deles em quatro anos que as folhas nem precisam de estar identificadas com os nomes de cada um. Eu sei logo qual deles é”.
Alexandra Cleto não acredita que, tão cedo, o teclado se torne dominante nas escolas portuguesas “porque implicaria um investimento brutal”. A professora também não pensa que tal seja fundamental, embora reconheça que “daria jeito e preparava mais os alunos para um futuro profissional”.
Para a docente do 1º Ciclo, é importante que as múltiplas competências sejam estimuladas durante as propostas de aprendizagem, preparando e consciencializando o aluno para um mundo repleto de novas tecnologias onde o novo e o velho não se excluem, mas antes complementam-se.
“Caso contrário, corremos o risco de, no futuro, não nos sabermos apresentar corretamente quando precisarmos da caligrafia e de ver diminuídas as nossas capacidades, o conhecimento que temos de toda a escrita, se tivermos de escrever alguma coisa à mão sem termos um computador à frente para nos corrigir os erros e os acentos”, conclui.
“É difícil deitar fora uma carta à mão de um ente querido”
Terá a escrita à mão algum valor que sobreviva ao email e ao sms? É claro que, com os computadores e os smartphones, escrever pelo próprio punho é bem mais difícil. Há até aplicações que captam o áudio da voz e a transformam em texto. Mas ainda há quem, por nada deste mundo, deixe morrer o hábito de escrever à mão e até leve a arte da caligrafia para a vida profissional. É o caso de João Brandão, professor de Design Gráfico, Design de Comunicação e Design Multimédia na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa.
Para o especialista em caligrafia, apesar de toda a evolução e revolução tecnológica, a escrita à mão mantém-se e faz parte do nosso dia a dia.
A escrita à mão deixou de ter a importância que tinha e já deixou de ter há muito tempo – desde que a prensa apareceu - mas mesmo assim não desapareceu, nem vai desaparecer e o conhecimento vai perdurar para o futuro. Se calhar vai escrever-se menos à mão. Não acho que isso seja necessariamente mau. Há aspetos práticos da escrita à mão, como escrever um recado relacionado com a nossa vida doméstica que vão continuar”.
O mesmo defende Emanuel Cameira, professor de Sociologia no ISCTE-IUL, em Lisboa, para quem, “obviamente que a escrita à mão permanece apesar de estar sujeita a uma permanente transformação ou evolução, desde que foi inventada (enquanto tecnologia) pelos sumérios, na antiga Mesopotâmia”.
Para o sociólogo, o que se verifica para a prática da escrita, verifica-se também para a da leitura.
“Ambas ganham configurações adicionais com a transição para o chamado paradigma digital. O que não significa que as formas ditas tradicionais de leitura e escrita estejam condenadas ao desaparecimento. Há desde logo um conjunto de práticas de escrita à mão que se continua a levar a cabo regularmente (basta por exemplo pensar nas crianças em idade escolar) ou em todas aquelas situações e contextos da nossa vida quotidiana ou doméstica – escrita de bilhetinhos ou recados, listas de compras ou de tarefas, cartas, postais aquando das festividades (…) Ou seja, com a transição para o paradigma digital, há uma convivência de modelos (e não uma substituição)”, afirma.
Já para João Brandão, o que “vai desaparecer mesmo é a carta escrita à mão, que passou a ser substituída pelos e-mails e pelas mensagens. Já ninguém escreve aquelas cartas que se escreviam antes, que ainda por cima ficava um registo de correspondência muito interessante”.
O que mais se perde é que já não se sabe como é a letra dos amigos e já não se guardam esses registos, como as cartas. É difícil deitar fora uma carta à mão de um ente querido ou de um amigo. Já um email, lê-se e apaga-se. É mais impessoal, as pessoas dão menos valor”, defende.
João Brandão leciona um Workshop de Caligrafia, a arte de escrever com uma grafia cuidada, na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, onde não faltam alunos há mais de quatro ou cinco anos seguidos.
Esta arte de escrever de uma forma cuidada treina-se e os materiais usados influenciam de forma direta os tipos de letra usados. “Isso está completamente interligado. Toda a evolução da escrita, desde o nascimento até hoje, houve sempre um paralelismo entre o instrumento e a tecnologia existente e a escrita em si”, explica o professor.
Na opinião do especialista em caligrafia, “há um revivalismo da escrita à mão hoje em dia. Há uma moda e vê-se nas placas dos restaurantes, nas marcas, nos logotipos, nas capas dos livros. Há um retorno para a manualidade. Estas coisas são cíclicas: há as que mudam para sempre, mas há outras que ficam. A manualidade da escrita vai permanecer. Vai sofrer transformações, mas o conhecimento não se vai perder”.
João Brandão sublinha que a escrita à mão é muito importante até para criar letras no computador. O conhecimento de criar formatos/tipos de letras não se vai perder tão cedo e a prática da caligrafia é crucial para os designers que criam tipos de letras para os computadores – uma área em que Portugal dá cartas a nível internacional.
Mundialmente, voltou-se à caligrafia para fazer convites de casamento em que os nomes nos envelopes são escritos à mão e contrata-se um calígrafo especialmente para o efeito. O Brasil é um país onde esta tendência está a fazer furor.
“A Casa Branca tem um calígrafo oficial. E isso está mais forte do que nunca. Nos anos 90, faziam-se as coisas no computador para ficarem escritas muito bem. Atualmente, contrata-se alguém para escrever à mão e muito bem”, realça João Brandão.
De maneira a contribuir para a prática da caligrafia, e porque a tecnologia pode ser uma boa aliada nesta arte de escrever à mão, João Brandão desenvolveu a app Calligraphy Practice, disponível em IOS para ser instalada no iPad, onde é possível treinar-se a escrita de letras, projeto que lhe valeu o registo da patente e uma menção honrosa na edição de 2014 do Prémio Nacional Indústrias Criativas, e que pode ser usado tanto por iniciantes como por especialistas.
Escrita à mão transforma-se em hobby na era digital
Numa realidade em que usar aplicações, redes sociais e email é uma tarefa diária, escrever à mão está a ganhar espaço de outra forma: como trabalho manual. Em cursos, canais na internet ou no mercado editorial, a escrita à mão populariza-se com os nomes de caligrafia e lettering. O conceito principal é o mesmo, de desenhar letras. A diferença é que a caligrafia tem por base regras tipográficas, enquanto o lettering é feito no improviso e mistura as mais variadas técnicas (como combinar letra cursiva e de imprensa/maiúsculas numa mesma frase, por exemplo).
João Brandão explica esta tendência de as pessoas estarem a procurar desenhar letras como se estivessem a fazer uma atividade manual, artesanal, com o valor da manualidade das coisas. Muitas das funções da escrita que estavam amarradas à escrita cursiva perderam valor e estão a ser substituídas. Ao mesmo tempo, as pessoas apropriam-se da escrita com outras funções, com características mais de fruição.
A caligrafia está a tornar-se uma modalidade diferente, uma moda, as pessoas querem aprender caligrafia. A caligrafia de alto nível está a ser um hobby para muita gente e é praticada também para o prazer da própria pessoa. É relaxante, é como fazer ioga ou tricô ou qualquer outra atividade que as pessoas considerem relaxante”, refere o especialista em caligrafia.
“À partida, diria que essa prática, personalizada, do lettering pode talvez ser entendida como mais uma manifestação, criativa neste caso, de como aquilo que é especificamente individual (e a escrita à mão é-o por excelência; historicamente, associamo-la aos valores da autoria, da unicidade, da subjectividade) é hoje, nas sociedades em que vivemos, altamente valorizado ou cultivado”, afirma o sociólogo Emanuel Cameira.
Mas essa prática, em que a escrita quase ganha, muitas vezes, o estatuto de ilustração, não pode também ser lida sem se considerar uma outra característica da realidade contemporânea: aquilo que, em sociologia, se tende a chamar de reflexividade estética, de esteticização do quotidiano, e que, no fundo, pode ser observada na presente aposta no design, na incorporação tecnológica, na omnipresença da estética, da arte, do figurativo como dimensões preponderantes e definidoras dos nossos estilos de vida, da nossa ação ou comunicação diária”, acrescenta.
O mundo vive atualmente uma fase de transição, onde a escrita à mão convive com a escrita em meios digitais. Escreve-se mais, mas menos à mão: há uma forma prática da escrita à mão que morreu e outra que se mantém e uma forma artística, do prazer de executar.
A título de exemplo da valorização atual do que é especificamente individual, citamos aqui o caso de uma jovem de 14 anos que em outubro de 2017 ganhou um concurso de escrita destinado a adolescentes entre os 13 e os 19 anos, no Nepal. Prakriti Malla tornou-se viral nas redes sociais graças à sua fantástica caligrafia.
A letra de Prakriti Malla é tão linda que foi classificada como a “caligrafia mais bonita do Mundo” e houve mesmo quem sugerisse à Microsoft que esta comprasse os direitos da mesma e a disponibilizasse como uma fonte (como Times New Roman ou Comic Sans que se podem encontrar disponíveis para documentos de escrita produzidos pelo Word, por exemplo), recebendo o nome da jovem.