Quando Vladimir Putin anunciou a invasão da Ucrânia - “operação militar especial” nas palavras do presidente russo - havia um propósito bem claro: "desnazificar" a Ucrânia. E, no dia em que a guerra se tornou real, uma outra realidade emergiu: a desinformação.
A 24 de fevereiro, o número de artigos russos fazendo referência ao nazismo da Ucrânia disparou. Mais de 2.500 artigos num único dia - um número muito acima do que vinha acontecendo pelo menos desde 2014, onde não ultrapassavam sequer os 250 diários. Foram analisados cerca de 8 milhões de notícias.
A análise é possível através dos dados da Semantic Visions, citados pelo The New York Times. A empresa analisou mais de oito mil sites russos, onde a narrativa de uma Ucrânia liderada por extremistas de direita, “nazis”, ajuda a sustentar o apoio interno.
Os argumentos principais repetem-se: os nazis ucranianos estão a usar civis como escudos humanos, matando-os e planeando o genocídio de russos. Trata-se de um retrato que tem sido desmentido, sucessivamente, pelos especialistas e fontes de informação independentes.
Um judeu à frente de um país nazi?
Volodymyr Zelensky, o presidente ucraniano, recebeu 73% dos votos quando foi eleito em 2019. Todos os partidos de extrema-direita combinados não chegaram aos 2%, abaixo do mínimo necessário para representação parlamentar. Zelensky é judeu. Mas como pode a narrativa russa associar judeus ao nazismo, quando estes foram as principais vítimas da ideologia?
Segundo Jeffrey Veidlinger, professor de História e Estudos Judaicos da Universidade de Michigan, ouvido pelo The New York Times, o que mais se importa na visão russa é a afirmação da Alemanha nazi com a antítese da União Soviética, para lá da perseguição aos judeus. “É por isso que eles podem chamar de nazi um Estado que tem um presidente judeu e isso não parecer contraditório”, afirma o especialista.
A força da ideia
A ideia de uma Ucrânia liderada por nazis ganhou força entre os russos. A mensagem começou por ser disseminada nos media estatais, acabando depois replicada por outras plataformas com pendor informativo, blogues e redes sociais. Dados da Zignal Labs, citados pelo jornal nova-iorquino, confirmam um pico nos tweets russos sobre nazismo após a invasão.
A estratégia funciona também porque a narrativa do combate ao nazismo está enraizada na sociedade russa, com um século XX onde esse foi um dos principais propósitos. “O que eles estão a fazer agora é, de certa forma, uma continuação deste grande momento de unidade nacional da Segunda Guerra Mundial. Putin está a tentar irritar a população, pondo-a a favor da guerra”, diz Veidlinger.
Prova disso é o discurso de Putin a 9 de maio, quando a Rússia celebrou o Dia da Vitória contra a Alemanha Nazi. “Estão a lutar pela nossa pátria, para que ninguém esqueça as lições da Segunda Guerra Mundial. Não há lugar no mundo para torturadores, esquadrões de morte e nazis.”
E a ideia, repetida vezes sem conta, está a gerar frutos num país onde o acesso a informação livre e independente está cada vez mais limitado. Uma sondagem realizada em maio mostrava que 74% da população russa apoiava a guerra. Dados da Semantic Visions mostram que 10 a 20% dos artigos sobre a Ucrânia fazem menção ao nazismo.
A origem da narrativa
A estratégia é simples: separar o mundo em dois pólos - o nós e o eles, os bons e os maus. E, com essa divisão, deixando a população russa em dúvida, validando as investidas no país vizinho, porque se trata de combater uma ideologia nefasta, independentemente das mortes que isso possa causar de ambos os lados.
Mas esta associação da Ucrânia aos nazis - com recurso a pequenos grupos, como o Batalhão Azov, que a Rússia procura retratar como maior do que aquilo que realmente é - não vem do nada. Jeffrey Veidlinger explica que, durante a Segunda Guerra Mundial, houve partidos na Ucrânia que procuraram colaborar com os alemães, contra os soviéticos.
“Diria que o que Putin realmente teme é a disseminação da democracia e do pluralismo da Ucrânia para a Rússia. Ele sabe que a acusação de nazismo vai unir a sua população”, insiste o especialista, um dos muitos que têm desmontado a narrativa russa.