Depois da Rússia, agora é a Ucrânia que vai atrás de uma ex-colónia portuguesa - TVI

Depois da Rússia, agora é a Ucrânia que vai atrás de uma ex-colónia portuguesa

Moçambique

Zelensky reforçou o jogo em Moçambique com a proposta de uma parceria para exportar cereais para África. O movimento é visto como uma tentativa de contraposição à influência russa na região, num momento em que o apoio militar de Moscovo para combater a insurgência em Cabo Delgado não tem dado frutos

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Um clima político fragilizado, uma ameaça à segurança constante na zona de Cabo Delgado e uma aliança com Moscovo que parece começar a dar alguns sinais de desgaste. É neste contexto que Volodymyr Zelensky lançou um trunfo na esperança de contrabalançar a aliança que Moçambique mantém com o Kremlin: esta terça-feira, durante uma conversa telefónica com o homólogo Filipe Nyusi, o presidente ucraniano convidou-o a ser um “importante parceiro logístico para fornecer cereais a todo o continente de África”.

Se aceitar, Nyusi pode ver o seu país tornar-se cada vez mais um elo de ligação com o Ocidente, esfriando as décadas de cooperação entre Moçambique e a Rússia, ao mesmo tempo que a Ucrânia procura à viva força reavivar as suas relações com os países africanos, especialmente os PALOP, para contrariar o soft power de Moscovo - uma movimentação que conta já, inclusive, com o apoio de Angola.

Maputo, onde há um mês foi inaugurada a primeira embaixada ucraniana em Moçambique, tem sido “um hábil parceiro da Rússia”, defende o tenente-general Marco Serronha, antigo chefe da assessoria dos Comandos na Cooperação Técnico-Militar em Angola e especialista militar em assuntos do continente africano. “Tem tido a vantagem de não colocar os ovos todos no mesmo cesto, até porque entende que o apoio que recebe de Moscovo para combater a insurgência no norte do país não tem tido grande saída.” 

Serronha sublinha que Moçambique ainda não recuperou do desastroso impacto da recruta de mercenários do Grupo Wagner para combater o terrorismo em Cabo Delgado. Em 2019, um contingente de 200 homens chefiados pelo entretanto morto Yevgeny Prigozhin chegou a Nacala para ser destacado para a frente de combate.

Mas esta operação de contrainsurgência deu azo a graves problemas de coordenação com o exército moçambicano, resultando mesmo em baixas causadas por disparos entre as duas forças aliadas e a situação intensificou-se de tal forma que os cerca de duzentos mercenários foram obrigados a retirar-se do campo de batalha após dez russos terem sido mortos em emboscadas por militantes islamitas. 

Por outro lado, aponta Marco Serronha, é a União Europeia quem neste momento tem surgido como o maior contribuinte para o reforço do equipamento das forças armadas moçambicanas. “É superior a 90%”, diz, sublinhando que “em termos militares a Rússia nunca forneceu grande coisa”. 

"Jogada tática eficiente por parte de Kiev"

Ainda assim, como aponta Tiago André Lopes, professor assistente de Relações Internacionais e Diplomacia na Universidade Portucalense, “os problemas de Moçambique são mais securitários do que alimentares”. O que faz com que a proposta de Zelensky não seja “suficientemente forte para afastar totalmente a área de influência russa” em Maputo. Mas o caminho faz-se caminhando e há aqui “uma jogada tática eficiente por parte de Kiev que, ao contrário das tentativas de influência portuguesa na região - muitas vezes voláteis e pouco tangíveis-, avança para algo concreto e interessante”. 

Depois da conversa com Zelensky, a presidência moçambicana emitiu um comunicado a salientar que a mesma “decorreu num ambiente cordial e de abertura”, durante a qual ambos os chefes de Estado “passaram em revista o estágio das relações bilaterais de cooperação e trocaram informações sobre a situação dos dois países”. “Filipe Nyusi lamentou as mortes da população civil e, mais uma vez, apelou para a necessidade de diálogo com vista a pôr fim à guerra” na Ucrânia, acrescenta o mesmo documento.

A aproximação entre os dois chefes de Estado acontece num momento em que Moçambique tem conseguido navegar no palco diplomático com uma certa neutralidade, abstendo-se frequentemente nos votos de condenação à Rússia pela invasão à Ucrânia. Inclusive, Nyusi foi um dos convidados em julho de 2023 na conferência Rússia-África que decorreu em São Petersburgo. “Está a seguir a estratégia do Cazaquistão ou do Azerbeijão no sentido em que vai somando o que pode”, explica Tiago André Lopes.

O especialista em diplomacia garante também que este pode ser o momento para a Ucrânia assegurar cláusulas no possível contrato sobre exportação de cereais. “É importante que garante que não possa existir interferência russa no transporte dos cereais, por exemplo”, aponta. 

Já do lado de Moscovo, a ajuda militar é vista como uma âncora para trazer o país firmemente de volta para órbita do Kremlin. “Irá existir pressão nesse sentido para que haja uma interrupção dessas negociações, mas esse caminho é difícil”, considera o tenente-general Marco Serronha. 

Mas jogar ambos os lados tem os seus riscos, assegura Tiago André Lopes. “Moçambique é um Estado frágil politicamente e pode dar-se o caso de a Rússia vir a perder interesse nele a médio prazo, o que em troca levaria a um eclipse do próprio interesse ucraniano - portanto, corre obviamente o risco de vir a ser isolado pelos seus parceiros.” 
 

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