No estúdio de televisão, ele era o presidente, ela a filha de um ministro. O actor Volodymyr Zelensky, protagonista da série “O Servo do Povo”, entra em cena e na sala onde costuma reunir os seus governantes, descobre que estes foram substituídos pelos filhos, sobrinhos e afilhados. A interpretar um deles estava a atriz Victoria Mushtey, num dos seus primeiros trabalhos em televisão. O cabelo ruivo apanhado, muito arranjado.
Cinco anos depois, da ficção para a realidade, Zelensky é o presidente de uma Ucrânia em guerra. E Victoria uma entre os milhões de refugiados causados pela invasão russa. Ela nunca esperou que ele assumisse o papel na vida real. “É uma espécie de situação surrealista. Sei o que vai dentro da cabeça de um ator. Há muita emoção, muita transformação interna. Mas ele agora é como uma montanha”.
Os olhos brilham-lhe a falar do antigo parceiro de cena na série “O Servo do Povo”, um dos grandes sucessos televisivos do país. Conquistou-a naquele momento, como agora conquista as atenções internacionais com o seu poder de oratória. Victoria sabe que ser ator ajuda o presidente a ser bom comunicador. “Tem a ver com a empatia, com sentir a outra pessoa. Ele sente que o nosso povo é bom”. Ele sente a cena.
A peça sobre outra guerra que a guerra não deixou estrear
Victoria Mushtey chegou a Lisboa três dias antes da guerra começar. Para passar uns dias férias com o marido. A mala, pequena, trazia aquilo com que teve de começar uma nova vida. Voltar a Kiev, no imediato, não era possível. E a capital portuguesa soube “como o abraço de um melhor amigo” no momento mais difícil.
Eram uns dias de descanso, antes da estreia da nova peça, “Força de Pelotão”, sobre a guerra no Donbass. “Fazia de atiradora furtiva. A estreia desta peça estava planeada para o início de março. Agora, parte da nossa equipa de atores está a defender o país na vida real, com armas nas mãos”.
Desde o primeiro minuto, Victoria tem pensado em como seria a sua vida se estivesse na Ucrânia a 24 de fevereiro. “Consigo ter uma arma na minha mão, porque ensaiei para a peça. Talvez tentasse estar no exército”. Vestir a personagem de tal forma que é impossível separar-se dela. Após tantas horas de treino, tantos filmes vistos, para que tudo saísse bem no palco.
“Força de Pelotão”, do dramaturgo ucraniano Dmytro Korchynsky, é uma das peças que mais gosta. “Tem pensamentos importantes sobre a Ucrânia, sobre a nossa força, sobre a nossa nação”. Fala sobre uma região onde a guerra já é uma realidade há muito. Foi nela, em Lugansk que Victoria nasceu. “Na casa da minha avó havia pintura ucraniana. Eu conheço a língua ucraniana muito bem. A minha família comunicava em russo, mas isso não era um problema”. Todos sabiam (ainda sabem) bem qual é o seu país.
“Estou em território português, mas estou na Ucrânia”
Victoria Mushtey está a viver em Lisboa com o marido, que é artista gráfico. Kiev era a cidade onde estavam a construir a sua vida em conjunto. “Agora, não sei se a minha casa existe ou não”. Victoria di-lo com uma simplicidade, como se estas palavras não fossem duras de exteriorizar. Ela quer voltar mal possa. E se a casa não estiver lá? “Agora entendo que é apenas uma casa, é apenas um carro. Não é importante, na verdade. Não penso nisso”. Reconstrói-se.
Porque aquilo que é verdadeiramente importante, a família, está em Portugal. O pai, a mãe, a irmã e uma tia estão a viver na Guarda, porque aí encontraram um lugar disponível para acolher todos. Para trás, ficaram duas semanas de bombardeamentos na capital ucraniana. “Não conseguia dormir. Tinha de trazê-los para cá. Foram três dias até cruzarem a fronteira. Foi duro”, recorda.
A família está segura. Mas não é possível descansar quando o sítio a que se chama casa está a ser atacado. “Sinto que todos os ucranianos, toda a nação, são uma única família. A maioria dos meus amigos está na Ucrânia. Não sinto que, por a minha família estar cá, posso estar calma. Estou em território português, mas estou na Ucrânia”.
Quando o coração está onde sempre pertenceu, só resta agir. A partir de Lisboa, Victoria Mushtey mantém o contacto diário com os amigos e com voluntários, para perceber onde é precisa ajuda. É como se construísse uma outra Ucrânia fora da Ucrânia. Para que aqueles que não tiveram a sorte dela, de estar no sítio certo no dia certo, possam continuar as suas vidas, a sua arte.
“Espero que seja possível criar uma rede internacional de projetos de arte sobre a Ucrânia, sobre a guerra, sobre a humanidade. Porque é muito importante. Há pessoas na Ucrânia, agora, que não o conseguem fazer. Talvez eu consiga, com outros artistas ucranianos que estão fora do país”.
O refúgio temporário
Victoria Mushtey entra na sala principal do Teatro Nacional D. Maria II para esta entrevista. A face ilumina-se. É como se a plateia, vazia, lhe devolvesse uma sensação que conhece tão bem. Adormecida, não esquecida. Ser atriz era algo que ela queria desde pequena. Aos 15 anos, começou a atuar de forma profissional.
As mãos sentem o espaço. O corpo coloca-se em posição para atuar, bem no centro do palco. Mas dói pensar em todos os teatros ucranianos que estão agora vazios, destruídos. “É uma das maiores dores, porque o teatro é algo muito pessoal para mim. É como uma igreja”. Um refúgio, em todos os sentidos.
Para este refúgio, temporário, Victoria Mushtey preparou algo. Um excerto do poema “Cáucaso”, de Taras Shevchenko, o mais conhecido poeta ucraniano.
“Continua a lutar – com certeza vencerás!
Deus ajuda-te na tua luta!
Pois a glória e a liberdade marcham contigo
E o direito está do teu lado!”
Ela sabe porque o preparou. Pensou em Zelensky quando o preparou. Porque, por mais diferentes que sejam os cenários em que hoje atuam, querem o mesmo: o primeiro nome dela.