Estamos a poucas horas de conhecer o vencedor do Festival da Eurovisão 2023, que provavelmente será a Finlândia, depois de um interregno de 17 anos, ou a Suécia - e cá estarei para reconhecer o erro, no caso de não se verificar -, pela sétima vez. Um recorde só alcançado pela Irlanda, nos idos dos noventas, tempos em que aquele país insular levava o concurso a sério, como atualmente faz o estado-berço da electro-pop dançável - que é conceito com direitos de autor - e, curiosamente, a Ucrânia: o único participante com três vitórias no século XXI; a última, como bem nos recordamos, na edição de 2022.
Muito atenta ao contexto - o que costuma ser raro -, no ano passado a Europa uniu-se em múltiplos planos pela causa ucraniana: no plano institucional, com juras de amor, promessas de apoio incondicional, conversas estéreis sobre a possibilidade de uma adesão relâmpago à União Europeia em formato banha da cobra e a tentativa hercúlea, falível mas bem intencionada de asfixiar economicamente o inimigo invasor. Já no plano simbólico, não faltaram manifestações, marchas e concertos solidários.
Há, portanto, três grandes grupos de cidadãos a quem, como democratas que respeitam o direito internacional, temos de estar agradecidos: os políticos, os voluntários e os telespetadores. Se os primeiros não fizeram mais do que a sua obrigação e os segundos a mais não poderiam nem deveriam ser obrigados, os terceiros, num rasgo revolucionário coletivo como já há muito não se assistia, muniram-se dos seus smartphones, carregaram-nos com 60 cêntimos mais IVA (ou o equivalente local), levaram a canção ucraniana a uma vitória esmagadora na Eurovisão 2022, com uma inaudita expressão de votos do público, e dessa forma mostraram ao Kremlin de que fibra é feito o ocidente.
Será da ótica, no máximo.
Cabe então questionar se este grandioso movimento de massas, que surpreendeu um total de zero pessoas, produziu alterações significativas nos acontecimentos dos meses seguintes. A resposta é tão surpreendente como a não qualificação de São Marino para a final desta noite: claro que não. Aqui chegados, os pressupostos que levaram a que um exército de televotantes desse a vitória à Ucrânia continuam válidos em 2023, mas desta vez, à Ucrânia, não restará mais do que uma palmadinha nas costas, porque já se sabe que as ondas de solidariedade só são bonitas - e acima de tudo, comercialmente eficazes - quando limitadas a uma unidade por utilizador.
O que aconteceu no ano passado no palco de Turim foi justiça popular de sofá em ato único. Ainda que sem intenção direta, o que grande parte do povo europeu, encantado pela oportuna ilusão de identidade europeia e sugestionado pelo impulso emotivo de abraçar quem sofre, fez naquela noite de maio do ano passado foi contribuir para a politização descarada de um concurso que se quer ligeiro e kitsch, quando na verdade geopolítica e Eurovisão são conceitos que só se deveriam misturar para criticar o eterno namoro entre os júris do Chipre e da Grécia, ou para dizer que os nórdicos votam todos uns nos outros, ou que nós somos uns coitados porque só temos um vizinho e mesmo ele nunca nos dá nada, porque de lá nem bons ventos nem ‘’dos ou trés puntitos’’, mesmo que a estatística o negue.
Com efeito, as consequências estão à vista: a produção do evento deste ano, organizado em colaboração com o Reino Unido, com desejos de reavivar a comoção, não se quis ficar pelas duas ou três canções com referências à guerra, que apareceriam de forma natural - tanto a baladona anti-belicista (Suíça) como o freak-show satírico (Croácia) -, como aliás acontece todos os anos, dependendo das polémicas internacionais que vão pululando nas trends do Twitter. Pelo contrário, nos entre-atos das emissões, optou por simular cenários que nos transportam para o terror vivido na Ucrânia, com prédios fumegantes, ruas destruídas e jovens vestidos com uns trapos dignos da rodagem de uma série pós-apocalíptica.
Como fã que anualmente tira férias para acompanhar a Eurovisão, digo: tenho pena.
Até agora, a EBU e a Eurovisão podiam ter orgulho em afirmar-se como a organização e o espaço para aquilo a que carinhosamente gosto de chamar diplomacia de purpurina: a celebração da diversidade e da tolerância; um espetáculo que tudo tenta para advogar o respeito pela diferença, a defesa da auto-determinação sexual. Fazia-o, sem statements deliberados, mas através da naturalidade cândida, quase naïf, com que sempre permitiu e promoveu essas representações.
Agora, entrou num novo capítulo, em que subiu a parada e arriscou o salto, passando também a ser o palco para tomar posição sobre disputas territoriais. Nada contra. Até estamos do mesmo lado, ao lado do estado soberano que foi invadido. Daqui para a frente, o risco está apenas em manter a coerência. É que tudo isto acontece no mesmo palco onde continua a atuar Israel.