Sócrates: ao estilo de Al Capone, as estórias do dia «D» - TVI

Sócrates: ao estilo de Al Capone, as estórias do dia «D»

Catorze longas horas depois, a decisão: prisão preventiva. Na espera, o Campus de Justiça foi abrigo de jornalistas e curiosos, defensores e revoltados. Até houve espaço - e tempo, muito tempo - para versos

«Socratino, porreiro pá
Sabichão e sem deslize
Diz que dinheiro não há
E que a culpa é da crise

Socratino falso engenheiro
Diz que a vida vai ser dura
Para o pobre não há dinheiro
Mas para mim há fartura»

Senhor Mascarenhas. O apelido basta e o seus 85 anos e 48 dias. Com precisão nos números e nas palavras, declamou - literalmente - estes versos. Contou à TVI24 que já os escreveu há muito tempo. E considerou-os bem a propósito, a meio da tarde, ainda nem se sabia que José Sócrates iria ficar em prisão preventiva. Portugal está nas bocas do mundo. Mas está primeiro nas bocas de cada um dos seus cidadãos. Inevitavelmente, a detenção, primeiro, e agora a medida de coação, enchem mais do que conversas de café. O facto é inédito. A duplicar. Um ex-primeiro-ministro detido. José Sócrates efetivamente preso. Ficará para a História, independentemente do desfecho. Neste dia «D», o sol começou por espreitar, mas o vento não arredou pé. A noite ficou fria. Assim como a notícia dada pela escrivã do Tribunal Central de Instrução Criminal, no Campus de Justiça. 

«Estou aqui a ver se o gajo vai dentro. Coitadinho. Eu pago a minha contribuição. Ele rouba o povo. É uma cambada». Entre risos e aplausos, o senhor Mascarenhas teve plateia para o seu discurso. E até foi interpelado por uma cidadã de etnia cigana, que ironizou: «Olhe, ele não recebia o rendimento mínimo!». Uns 30 cidadãos iam parando por ali, depois do almoço.

Antes, durante a manhã, o aparato era bem menor. Reduzia-se à vintena de jornalistas. Ao entra e sai normal daquela porta para onde todos olhavam. No outro ponto de reportagem, a garagem de acesso ao edifício, guarda montada. Os transeuntes que passavam iam tratar das coisas do dia-a-dia. Mas a ninguém todo aquele cenário era indiferente.


 
O interrogatório começou às 10:07 (precisão do comunicado que viria a determinar as medidas de coação). Acácio Marques, 68 anos, chegou  vestido  a rigor, fato e gravata. Veio propositadamente. Não ficou até ao fim. Nem ele nem os jornalistas antecipavam a longa espera. O que não o impediu de retirar conclusões:

«Este espetáculo parece o Al Capone, uma palhaçada autêntica. Antigamente, quando apareceu o Al Capone nos EUA, era o rei, senhor, matava e roubava e não havia provas. Depois lá foi apanhado e morreu na prisão. Isto é o mesmo, olhe que é: os tipos da massa ainda estão cá. Ele [José Sócrates] foi preso mas os outros antes dele andam à solta, e até roubaram mais: o Salgado e o outro fininho que até me esqueço do nome dele [Oliveira e Costa].E à chegada do avião, aquele aparato todo. Isto é uma vergonha para o país. Se tem algum jeito...»


Votou e vota sempre PS . «Eu farto-me de rir se ele sai. Se ele fosse culpado teria ido para o Brasil. O Duarte Lima está cheio de dinheiro e o Salgado também. [Sócrates] era para ir para Presidente da República. Foi por isso que lhe fizeram isto. Mas se é culpado acho bem que tenha de pagar», ressalvou.

Um casal de Lamego veio tratar de assuntos pessoais. «É  bem feito, se tem culpa no cartório vai ter de pagar. Há pessoas a passar fome e estes gajos a desviar dinheiro... Mas não apanha nada, essa gente não apanha nada. Apanhava quem roubasse cinco euros», lamentou.

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Já António Oliveira, 70 anos, simpatizante do PSD, começa por brincar: «É uma pessoa muiiiiito minha amiga», afirma, aludindo ao ex-primeiro-ministro socialista. Falando a sério, a seguir, diz que «se está implicado em algo, que seja julgado e bem julgado. Devia ter tido juízo como homem que representa o país».

Enquanto isso, há uma jornada normal de trabalho para realizar. Repara-se um muro, mesmo em frente ao edifício. O chefe de obra comenta. «Se fosse só ele....». O outro trabalhador está de olhos postos no cimento, de costas para onde Sócrates se encontra.



As câmaras de TV andam de um lado para o outro para captar planos diferentes e João Marques, 70 anos, que ia de passagem até ao Vasco da Gama, reparou na azáfama: «Ah! É o Sócrates», pensou. Sem simpatias partidárias, entende que «não se acusa uma pessoa destas sem indícios fortes».

Outro reformado, o senhor Gonçalves, 69 anos, veio mesmo de propósito: «Como já despedi os patrões todos vim dar uma volta por aqui», gracejou. Nunca votou noutro partido que não o de Sócrates, mas admite: «Já não acredito em ninguém. Estamos minados de corruptos e oportunistas. Tenho pena, mas se está metido em caldeiradas, só tem de pagar pelo que fez, ele e os outros todos». Outro senhor entra na conversa e pergunta quantas televisões estão ali. Antes de obter a resposta, começa imediatamente a contá-las.  Três jovens passam e gritam: «Vai uma pinguinha?».

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Alguns momentos de descontração tentaram conter a ansiedade de todos. Um carro da CGTP passou por ali, com uma megafone e abrandou perto das carrinhas de satélite das TV. Ao longe, pareceu que estava a enumerar os escândalos que envolvem grandes figuras, dos vistos dourados, ao BES e à detenção de José Sócrates.

No passeio, quem passa, olha sempre
. E encaixa logo que é ali que está a ser interrogado o ex-primeiro-ministro. José, 47 anos, adverte a amiga Célia, 54 anos, em tom sarcástico: «Vamos sair daqui, ainda somos associados ao Sócrates». Ambos ficaram incrédulos com a notícia. Ela apartidária, «mas não apolítica», desabafa: «Ah e tal, depois admiram-se com os níveis de abstenção». Ele, um social-democrata desiludido.

Os jornalistas vão fumando os seus cigarros. O tempo não flui. À sombra, o vento torna-se desagradável e frio. Os comentários de quem passa replicam-se: «Acho muito bem. Deviam fazer mais». Detenções, depreende-se. Há quem reporte o que vê pelo telefone: «Estão aqui as televisões e as rádios todas».

Comentários de fato e gravata


Ana Oliveira, 26 anos, brasileira, usa a sabedoria popular para descrever a situação:  « Onde há fumaça, há fogo. É inédito em Portugal, mas acho bem porque a corrupção é uma coisa que massacra o povo».

Enquanto fala, os comentários de três homens de fato chamam a atenção. Três advogados bem dispostos, com uma dose de sátira pelo meio: «Como diz o colega [João Araújo, advogado de Sócrates] não temos opinião». E um deles logo acrescenta: «Vendemos opinião». Risos a triplicar e piadas como «vamos ali tirar um curso a Paris».

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Têm o juiz Carlos Alexandre, que tomou a decisão final, «em muito boa conta». Entendem que faz «acusações consolidadas e é uma pessoa honesta». Com sentido de humor, contam o episódio de engenheiro informático, indiciado pelo crime de clonagem de cartões, que se terá feito questão de se apresentar como engenheiro ao juiz, ao que Carlos Alexandre terá respondido: ‘Ah! Traga já aqui um café para o senhor engenheiro’. «Depois, tumba, prisão», salienta um dos advogados.

A conversa resultou também em algumas considerações mais jurídicas: «Quando a Justiça funciona tem de se fazer um show
para as pessoas perceberem», mas «a Justiça funciona mal. Se isto acontece agora, é sinal que deveria acontecer mais vezes». reconhece um deles.

«O gajo também se pôs a jeito. Fez declarações [no seu comentário semanal, sobre o empréstimo para estudar e o apoio financeiro da mãe] que mais valia estar calado», apontou outro. «Coitado do Sócrates... Aquelas celas são desgraçadas», disseram ainda.



Mais corrupio de jornalistas e câmaras porque alegadamente João Araújo saiu para fumar na parte lateral. Viria a sair pela porta principal, por várias vezes, e com as reações sempre surpreendentes: «Saí para ir buscar o meu sobretudo». Foi e voltou, mesmo, com o casaco. Quase uma da tarde e finalmente o inquérito terminou. Esperaríamos até às 22h30 para conhecer a decisão final, não sem antes as sucessivas expectativas criadas, terem saído  frustradas.

«Ele era a Alice no País das Maravilhas. Desempregado e a viver assim em Paris?»


Enquanto isso, há namorados que tiram selfies alheados do que se passa, ao mesmo tempo que a jornalista da TVE, a televisão pública espanhola, prepara a sua peça para as 14:00.



A TVI24
conversou, depois, com Sandra Urdin. Conta que a notícia da detenção foi motivo de abertura do telejornal, no sábado. «É muito importante (...). É a pessoa que representa todo um povo (...) e depois de ter tido um mandado muito atribulado por causa do dinheiro do país, da troika, do resgate. Saber que as suas contas podem não ser muito claras, é muito importante. Estamos a acompanhar o caso e a contar outros casos em que esteve envolvido de alguma maneira, na altura do seu mandato». Do Freeport, passando pelo Face Oculta e pelo Monte Branco.

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A correspondente tece algumas críticas à comunicação por parte da Justiça, em Portugal: «Em Espanha, a Justiça comunica mais...  As esperas judiciais são todas iguais (...) mas a comunicação é mais fácil, porque todos os tribunais têm o seu próprio gabinete de imprensa (...) nada que revele coisas de segredo de justiça (...) mas sempre temos algum dado que podemos utilizar (horas a que entra, horas a que sai, quando crê o juiz que vai durar o interrogatório, para não estarmos sempre a falar no condicional). É bom não só para nós, mas para a opinião pública. Afinal, o que dizemos é para ela». Entre os espanhóis, a reação é como aqui: «Choque e cautela».



O caso Sócrates é tão importante que a uma jovem ex-jornalista, de 25 anos, e que trabalha ali pelo Parque das Nações, o bichinho da reportagem trouxe-a ao Campus de Justiça. Já Deolinda Peres, 71 anos, reformada, veio porque teve de ser: «Não me perdia a vir aqui de propósito para ver... Não sei menina, são todos iguais... Só depois de sair do Governo é que sabemos o que fazia?
». Coloca a dúvida no ar, antes de admitir simpatia pelo PS. Esteve reticente em reconhecê-lo: «Se eu disser, vai julgar que sou amiga dele». Mais à vontade, deixa-se levar pelas confissões: «Trabalhei 11 anos na Assembleia da República a limpar o lixo deles»
. «Fico desiludida com os políticos que lá têm estado. Para mim, o Passos Coelho é o pior deles todos».

Helder Barata, 38 anos, trabalha entre Barcelona e Portugal. Aproveitou para dar um salto ao Campus de Justiça, tal era a curiosidade. «Tenho amigos espanhóis que comentam que somos o terceiro país da Europa mais corrupto, a seguir à Itália e à Grécia». Está à vista, deduz. Não sem criticar a demora na Justiça. «Pelo que vi a denúncia da CGD já leva um ano...».

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Hesitante no passo, de trólei na mão e semblante sério, uma senhora reformada, ex-funcionária pública, acaba por ceder à curiosidade e senta-se perto dos jornalistas. Está revoltada, mais ou menos surpreendida. Na semana passada, os vistos gold serviram-lhe de embalo para isto, mas nunca se está à espera que um ex-primeiro-ministro seja detido. Socialista, afirma:

«Não podemos ligar isto aos partidos. Há pessoas boas. Tenho de dar razão ao Passos Coelho, embora esteja contra ele, quando ele diz que os políticos não são todos iguais... Mas estou convencida que é grave». Resume porquê: «Ele era a Alice no País das Maravilhas. Desempregado e a viver assim em Paris?».


A contagem decrescente

Pouco depois das 17:30, dizem que em menos de uma hora fica tudo resolvido. Estuda-se a montagem do palanque para o comunicado do juiz Carlos Alexandre, lido por uma funcionária, no exterior, logo à entrada. De repente, muda tudo lá para dentro. A correria expectável de jornalistas, câmaras, microfones e blocos de notas. Embora mais apertados, todos mais quentes também. Sem nunca imaginar a longa espera de cinco horas que ainda tínhamos pela frente. 10 câmaras e diretos sucessivos com muito pouco para dizer de novo, a não ser os sucessivos adiamentos.

A escrivã Teresa Santos veio fazer um teste de voz. Tal era a ansiedade de todos os jornalistas que houve quem pensasse que aquele era, finalmente, o momento. Na regulação da voz, ficou-se a saber que a funcionária do Tribunal Central de Instrução Criminal almoçou «muito bem», um peixe cozinho com couve. Água na boca dos jornalistas, há horas e horas sem comer.

Às 18:20 os polícias montam um cordão policial de seis homens e a esperança reacende-se. Sem sucesso. Às 19:28, de fininho, entra uma senhora, bem parecida, no átrio. Pede, em bis: «É favor prender os de gravata». Foi reencaminhada para a saída pela polícia, como já antes tinha sido outro cidadão que, sempre em silêncio,  foi também convidado a sair.

21:55. Alguns funcionários do Tribunal, que ficaram pela curiosidade, não se mostram surpreendidos com a detenção, mas estão na expectativa. Dada a demora, já pensam em mandar vir pizzas. Elas acabam por chegar mesmo, mas para alguns jornalistas.

Prisão: as primeiras reações

O anúncio da prisão preventiva por João Araújo chega pouco audível, mas percetível, por volta das 22:20. Às 22:30, a leitura do comunicado oficial. Preto no branco, concluía:



Lá fora, nada de movimentações populares que justifiquem o cordão policial. Apenas um senhor e uma senhora, longe, que acabaram de se conhecer e comentam a notícia. Ele diz: «Grande parte dos políticos devia lá estar. Porque é que o Portas não está? Na Alemanha já há gente presa».  Refere-se aos submarinos. Mas quem parece que pode ter metido água foi o «animal feroz», como o próprio José Sócrates se autointitulou.

«Até simpatizava com ele pelo que fez pelo país. Fez muita coisa boa que as pessoas esqueceram. Pelos pobres que se esqueceram. O rendimento mínimo... Deu coisas a mais...Deu coisas a mais... Olhe, os carros elétricos», exemplifica.

Perto das garagens é que, apesar do frio de inverno, há um maior aglomerado de curiosos. Meia dúzia. Um casal na casa dos 30 anos, continua cauteloso nas palavras: «Estamos na expectativa». A decisão fá-los pensar que os indícios são mesmo «muito fortes», mas admitem: «Falta-nos conhecer tudo. O Zé Povinho fica sempre na ignorância».
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