«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt .
‘Bom dia, senhor Eduardo Luís’.
‘Boa noite, senhor Eduardo Luís’.
Imaginem o que é viver num condomínio e saber que na portaria está, dia após dia, um campeão europeu. Chegar a casa e saber que o vigilante é um homem que tem mais de 150 jogos pelo FC Porto e 90 minutos em cada uma das finais europeias dos anos 80.
É um luxo. Eduardo Luís, nome grande do futebol azul e branco, fartou-se de ser treinador. Em 2015 saiu do Penafiel e dedicou-se durante algum tempo à sua segunda paixão, a massoterapia. A pandemia e o contexto económico obrigaram-no a mudar, mais uma vez.
«Fiquei com demasiado tempo disponível e entrei para um sistema de vigilância num condomínio fechado. Estive lá todo o ano de 2020 e vou continuar. Estou ocupado, o trabalho não é cansativo e tenho uma retribuição financeira. Tenho o tempo bem organizado e sinto-me útil, que é o mais importante.»
Eduardo Luís, 65 anos. Defesa central – às vezes lateral esquerdo – de impressionante regularidade. Homem nascido em Lisboa, formado entre o Olivais e Moscavide e o Benfica, mas para sempre conotado com o FC Porto. De 1982 a 1989, período dourado nas Antas, o antigo internacional português vive tudo o que um futebolista sonha viver.
Há cinco anos, Eduardo decidiu deixar o futebol profissional. Na altura, agarrou-se ao gabinete de massoterapia – vertente da fisioterapia – e aos pacientes que acumulou desde 2004.
«Comecei a ajudar uma amiga na clínica que ela tinha. Sempre gostei da área, porque tive uma lesão grave e interessei-me mais pelo corpo humano. Recuperei com o grande Rodolfo Moura e comecei a achar bonita a forma como o organismo se regenera», contextualiza ao Maisfutebol.
«Comecei na clínica a arrumar toalhas e a fazer outros tipos de trabalhos, mas evoluí lá dentro e tirei um curso de fisioterapia. Fiz um contrato e trabalhei três anos no espaço. Depois saí e tive um gabinete meu, até 2019.»
Futebol, massoterapia e vigilância numa zona habitacional. Três mundos improváveis na vida de um campeão europeu. Eduardo Luís fez dupla com Celso no inesquecível FC Porto, 2 – Bayern Munique, 1.
Deixou de jogar em 1992 e iniciou uma longa carreira de treinador: Ovarense, Maia, União da Madeira, juniores do FC Porto, Aves, Vilanovense, Vizela, Vila Meã, Candal, Lourosa, Benfica C. Branco, Vilanovense. Até ao dia do adeus.
«Afastei-me completamente. Física e psicologicamente já não sentia motivação para ser treinador. Motivação para aturar jogadores e dirigentes que, muitos deles, não percebem nada de futebol. Pensei bem, foi fruto do cansaço, foram muitos anos. Mas gostarei para sempre de futebol, continuo a ver e tenho todo o gosto em comentar.»
«Não tenho culpa de ter jogado no Benfica, nasci em Lisboa»
A geração de adeptos portugueses que viveu os anos 80 associa sempre Eduardo Luís ao FC Porto. Correto. Baluarte das conquistas azuis e brancas, inconfundível no seu bigode e na forma segura de estar em campo, um defesa discreto e de extrema eficácia.
O que poucos sabem é que Eduardo Luís nasceu em Lisboa e que foi, antes de ser dragão, campeão nacional pelo Benfica na época 1975/76.
«É verdade, serei sempre do FC Porto, mas não tenho culpa de ter jogado no Benfica (risos). Nasci em Lisboa, os meus pais viviam perto do campo do Olivais e Moscavide. Antes de ter idade para me inscrever no futebol, porque na altura só havia o escalão de principiantes e juniores, até joguei basquetebol no Atlético Clube de Moscavide. Aos 15 anos é que entrei diretamente para os juniores do Olivais e Moscavide e daí saltei para o Benfica», recorda Eduardo Luís, um dos homens que defendeu a Seleção Nacional no Euro84.
Curiosamente, o Sporting também podia ter entrado nesta história. «Estudei no Liceu Camões, que ficava perto do Parque Eduardo VII. Tínhamos um grupo de miúdos que jogavam bem à bola e começámos a jogar às escondidas da polícia, porque na altura do Estado Novo isso não era permitido, contra um grupo de trabalhadores dos hotéis ali da zona. Foi aí que alguém me viu e quis-me levar ao Sporting.»
«Fui lá treinar, o treinador César Nascimento gostou de mim e ia assinar. Mas tive um problema pulmonar e tive de parar de fazer exercício físico», revela Eduardo Luís. «Foi um ano inteiro a tomar injeções e comprimidos. Assim que a radiografia mostrou que estava curado, fui às captações do Benfica com um amigo e fiquei. Ainda nos juniores. Fui colega do Eurico [Gomes], que reencontrei mais tarde no FC Porto.»
Após dois anos nos sub19 do Benfica, Eduardo Luís fez um ano no Marítimo, na antiga II Divisão Nacional. «Fiz vários jogos nas reservas do Benfica, quando ainda era júnior, e o treinador Pedro Gomes gostou de mim e convidou-me para ir para lá. Tinha 18 anos, fui emprestado pelo Benfica, e andei pela primeira vez de avião (risos).»
VÍDEO: o primeiro golo de Eduardo Luís no FC Porto (aos 30s, imagens RTP)
No regresso à Luz, Eduardo Luís fez três jogos num Benfica treinado por Mário Wilson. O suficiente para ser campeão nacional. No final da época recusou a proposta de renovação contratual e voltou à Pérola do Atlântico para colocar o Marítimo pela primeira vez na I Divisão Nacional.
«O Benfica ofereceu-me um contrato de quatro anos, mas o Marítimo demonstrou muito interesse em mim. Optei pelo Marítimo, porque não gostei da forma como o Mário Wilson me tratou numa situação – não quero entrar em detalhes, até porque ele já faleceu – e eu pensava que ele ia continuar no clube. Curiosamente, eu saí e ele também saiu para o Boavista.»
«Fiquei seis épocas no Marítimo, subimos pela primeira vez à I Divisão Nacional em 1977 e aquilo foi uma loucura», recorda, com natural nostalgia. «O antigo campo do Marítimo transbordava de gente, na altura aquilo para as pessoas da ilha foi um feito extraordinário. Apanhei lá grandes treinadores: Fernando Vaz, Manuel Oliveira, António Medeiros, Fernando Mendes, além do Pedro Gomes.»
Eduardo Luís joga tão bem que o FC Porto, de José Maria Pedroto, o contrata. A primeira tentativa, em 1980, falha, mas em 1982 o defesa passa a ser dragão de corpo inteiro.
«Infelizmente aconteceu aquela confusão do verão quente, o senhor Pedroto saiu e tivemos de adiar dois anos a nossa união. Entrei no clube logo a seguir às eleições que colocaram o senhor Pinto da Costa na presidência. Uma semana depois de ele ganhar o sufrágio, teve a amabilidade de me convidar para ir ao Porto e assinei contrato.»
«A final de Viena é o jogo mais marcante da minha vida»
«Sete anos maravilhosos no FC Porto», três campeonatos nacionais ganhos, duas taças de Portugal, três supertaças, uma presença na final da Taça das Taças, mais uma Supertaça Europeia e uma Taça Intercontinental. No topo da memória, no pulsar do coração, está ainda e sempre a final de Viena contra o Bayern de Munique.
«É o jogo mais marcante da minha vida. Fiz um bom jogo ao lado do Celso e depois passei para lateral esquerdo. O Artur Jorge tirou o Inácio na parte final, meteu o Frasco, passou-me para a esquerda e recuou o André. Demos a volta ao jogo depois disso.»
Eduardo Luís viaja, por instantes, até ao relvado austríaco. À noite em que o David que já se fazia grande abateu com requintes de génio o gigante alemão.
«A primeira parte acabou com um livre do Celso a rasar a barra. Fomos para o intervalo já enraivecidos e na segunda parte podíamos ter feito três ou quatro golo. Fizemos só dois e entrámos na história do FC Porto e do futebol português. Tivemos um jogo de grande qualidade, inteligente. O Madjer e o Futre estiveram endiabrados.»
«Aquilo não foi milagre nenhum», continua o ex-defesa. «Merecemos ganhar e podíamos ter marcado mais golos. Fiz um jogo tranquilo com o Celso lá atrás. O Lima Pereira partiu a perna e não pôde jogar. O outro central era o Festas, que ficou no banco. Entendia-me muito bem, tanto com o Celso como com o Lima.»
1987 é um ano determinante na história do FC Porto, mas Eduardo Luís acredita que a glória europeia podia ter chegado logo em 1984, pela mão do já doente José Maria Pedroto.
«Tínhamos um respeito sagrado por ele», conta Eduardo Luís. «Ninguém lhe levantava a voz. Tinha a capacidade de colocar um jogador nos píncaros e de colocar o mesmo jogador no fosso. Uma vez fui jogar pelas reservas, no meio-campo, as coisas estavam a correr-me mal e ele substituiu-me: ‘olha, podes sair e vais treinar lá para cima com os guarda-redes’. Tínhamos de aceitar e aguentar.»
A época de afirmação de Eduardo Luís acontece em 83/84. Ano em que o FC Porto chega à famosa final de Basileia, polémica e perdida contra a Juventus. Eurico e Lima Pereira fazem a dupla de centrais e Eduardo Luís joga na esquerda.
«O Inácio lesionou-se e o senhor Pedroto colocou-me lá. Punha-me as mãos pelos ombros e dizia-me: ‘Vais para ali, vais ganhar moral e quando voltares a ser central vais apanhá-los a todos’.»
«Jogámos tanto, tanto. Jogámos muito», diz Eduardo Luís, ainda a recordar a derrota difícil de engolir contra a Juventus. «Sofremos dois golos estúpidos, houve ali alguma precipitação do saudoso Zé Beto. Mas depois fomos para cima deles e falhámos golos atrás de golos. No segundo golo da Juventus houve falta do Boniek e o árbitro nada assinalou, era um artista. Jogámos muito, sinceramente. Essa equipa do FC Porto tinha 11 portugueses, só estava o Mike Walsh no banco.»
Os anos passam, os camaradas afastam-se, raras vezes Eduardo Luís tem o privilégio de privar com os homens que com ele conquistaram a Europa.
«Não temos uma relação assídua. Muitos estão na estrutura do FC Porto e juntam-se mais entre eles. Não há grande proximidade, até há um tempo estávamos mais vezes juntos. No futebol terei feito para aí cinco amigos. Mas tenho muitos conhecidos. Juntámo-nos em alguns momentos organizados pelo clube. Alguns se calhar cansavam-se dos convívios, mas agora de certeza que têm saudades.»
A de outubro de 1988, Eduardo Luís faz o último jogo pelo FC Porto. Forma dupla de centrais com o malogrado Kongolo numa vitória por 2-0 sobre o HJK em Helsínquia. Dias depois, uma grave lesão atira-o para o departamento clínico e para a lista de dispensas.
«Nunca mais joguei. Parecia que estava a adivinhar. Fomos fazer um amigável contra o Boavista, na Maia, e estava um dia feio, com muita chuva. Ia no autocarro a pensar que estava sem vontade de jogar, não me apetecia nada. Ainda por cima o jogo começou uma hora depois da hora marcada. Aos 25 minutos vou a afastar uma bola com o pé direito, o Nelson Bertolazzi põe a mão no peito e eu faço uma rotação completa com a perna esquerda, em desequilíbrio. Senti uma coisita, mas não liguei. Um pouco depois, salto a uma bola e quando apoio o pé no chão, sinto o joelho a estalar. Rotura de ligamentos. Acaba ali a minha ligação ao FC Porto.»
Eduardo Luís é um dos que saem na célebre limpeza de balneário de Artur Jorge. «Acabei o contrato em 1989, não renovei, o processo foi um bocado frio. Foi um bocado inglório o meu final no clube.»
Cinco anos depois, Eduardo ainda volta ao clube para treinar os juniores. A época 1994/95 tem muitas vitórias, mas não a mais importante: o título nacional. Aí sim, é a despedida definitiva.
Um campeão europeu, um homem com mais de 150 jogos de dragão ao peito. Um vigilante de luxo num condomínio fechado. Será que os condóminos sabem quem lhes abre a porta?
‘Bom dia, senhor Eduardo Luís. E até logo, campeão’.